Não é só aqui que a indústria automotiva passa por um momento de incerteza. A crise dos chips, preços nas alturas, o tsunami dos carros elétricos prometendo varrer o sistema de fábricas, postos e oficinas de cabeça para baixo: no Brasil e no mundo, o futuro parece guardar algo radicalmente diferente do status quo.

Mas o que pensa a própria Indústria diante disso? Num evento para anunciar parcerias tecnológicas no Cubo Itaú, em São Paulo, o Olhar Digital foi convidado a conversar com dois executivos do Grupo Stellantis, que reúne 16 marcas de veículos, entre elas Jeep, Fiat, Chrysler, Citröen e Peugeot. São eles Breno Kamei e Gustavo Delgado.

Breno é diretor de Programas e Planejamento de Produtos para a América do Sul da Stellantis.

Breno Kamei, diretor de Programas e Planejamento de Produtos para a América do Sul da Stellantis
Breno Kamei | Divulgação

E Gustavo, gerente de inovação da Stellantis para a América do Sul e head do programa Cart, uma iniciativa para vendas levadas aos carros dos clientes.

Gustavo Delgado, gerente de inovação da Stellantis para a América do Sul e head do programa Cart.
Gustavo Delgado | Divulgação

Ao longo de 50 minutos, falamos sobre os planos das montadoras do Grupo Stellantis e o futuro do carro no Brasil.

Olhar Digital: Vocês estão firmando várias parcerias com outras empresas de tecnologia hoje. O que deve mudar do ponto de vista do usuário?

Gustavo Delgado: A jornada de mobilidade ainda é muito fragmentada e a gente entende esse carro num papel maior do que ele tinha de outrora. Ele se transforma de fato numa plataforma, e essa plataforma pressupõe conexões e essas conexões convergem em soluções em um único lugar. Transformar esse produto que a gente ainda chama de carro numa experiência continuada pra algo que a gente conhece muito bem como smartphone. No caso do Cart, além de funcionar como um aplicativo nos principais sistemas operacionais como Android Auto e Apple Car Play, a gente consegue projetar ele no sistema multimídia. Então você tem uma experiência continuada do carro, transformando ele também num grande gadget. Mas também tem outras soluções que estão integradas: a gente consegue facilitar o pagamento de Multa, IPVA e integrar, que agora é um processo analógico, se você levar uma multa consegue descobrir no Cart e fazer pagamento diretamente na aplicação.

Exemplo de algo que as pessoas não esperavam?

GD: Com o consentimento do consumidor, dependendo de onde ele se locomove, eu consigo entender onde tem uma oferta que é relevante pra esse lado de comportamento de uso. Talvez ele compartilhe comigo preferências pessoais e a partir desse entendimento eu posso dizer “Aqui tem um lugar legal para você ir com uma condição condizente com o que você espera”. Eu posso citar uma parceira que deu significados muito significativos: a gente se conectou com o MacDonalds, que em tese não tem nada a ver com automóveis. Na prática como funciona: eu entrei no meu carro, projetei a central, tou com fome, tipicamente esse consumidor pode ir até o Mac. No Cart, o consumidor pode fazer esse pagamento do sanduíche e pegar. Chegou lá e recebeu o pedido.

Carros elétricos tem muito a ver com isso, não?

Não GD A gente tem uma integração com o Tupinambá dentro do carro. Mas ainda é um sistema bem dinâmico sem maturidade. 

(…)

O Brasil é um mercado que está no estágios iniciais de desenvolvimento de elétricos e híbridos plug-in, nós estamos adotando uma estratégia de parcerias. Pra realmente minimizar o impacto do investimento e achar soluções que consigam desenvolver negócios, A tupinambá conseugue fazer uma gestão mais otimizada e inteligente desses carregadores.

Ao invés de iniciativas individuais a gente tem buscado parcerias. Ainda não chegamos lá, mas vamos. 

O Brasil vai ser separado do mundo em eletrificação? Vai ter um ecossistema diferente do mundo? 15:00

Breno Kamei: O tema central é qual o objetivo do Brasil como nação e como as montadoras entram nisso. O objetivo é descarbonização, ponto. Existem meios de se chegar lá e o Brasil tem esse diferencial do etanol que é extremamente relevante. Por que? Quando você olha esse desafio que a gente tem em outros mercados como os EUA, Europa… até pela matriz energética, pela contribuição do setor automotivo dentro das emissões totais, que é muito diferente do Brasil, e o poder de compra do consumidor com o poder investimento do governo federal, estados e município desses países, nós temos um universo completamente diferente. Nossa renda per capita é ⅓ ou ⅕ comparado a esses mercados, o nível de subsídios para elétricos ou híbridos de alta voltagem nem se compara, até em termos de infraestrutura, na Europa, EUA e China você tem facilitações muito grandes. Na Europa, metade do custo é bancado pelos governos de diversos países. E no Br você tem outra perspectiva completamente diferente. Tem essa questão do poder de compra, e tem a disponibilidade também de o govenro conseguir incerntivar isso. Em contrapartida você tem o Etanol que, no ciclo do posto a roda, reduz em até 80% das emissões. A gente vê como um grande diferencial, mas a gente vê simplesmente etanol? Não. A gente acredita numa diversidade de tecnologias e num avanço da utilização do etanol também nesse contexto. 

Ex, Célula de Etanol?

Isso seria o futuro de longo prazo, mas até lá a gente tem desde um nível de eletrificação leve de etanol até célula de combustível. São dezenas de milhares de postos espalhados em todo  Brasil que já tem etanol disponível. Se você pode usar isso a favor da descarbonização, por que não? Em contrapartida, a gente acredita na diversidade também. A gente tem veículo urbano elétrico – o 500 que você testou – a gente tem um urbano um pouquinho maior, o 208 elétrico e o Jeep Compasss, híbrido plug-in. Para viagens, a gente acredita que hoje essa seria a melhor solução. E a gente também tem vans elétricas, porque existe também uma demanda de empresas e frotistas para diminuir a pegada de emissões.

Eu não dirira que o Brasil está indo numa direção diferente do mundo, a gente tem mais posibilidades nesse contexto e nós como Stellantis tem um objetivo global de até 2038 ser carbon-net zero. 

Se a gente pega a projeção de custo do elétrico e híbrido de alta voltagem, a gente vai ainda ter uma restrição considerável dentro da nossa realidade. 

E o consumidor? Sinto que é muito elitizado ainda, versões mais baratas nem chegam. 

São os early adopters ainda. A tecnologia conta miuto. Você tem um carro elétrico que não é conectado, que não traz uma inteligência no seu dia-a-dia até na experiência com infraestrutura e tudo mais, a gente entendeu conversando com os consumidores que tem que ter uma tecnologia embarcada além do power train elétrico que precisa ser componente hoje dessa atuação.

Inclusive pensando na democratização desse tipo de tecnologia no futuro, se você não embarcar esse tipo de tecnologia minimamente, você não vai conquistar o consumidor. Não adianta você ter um veículo compacto sem esse tipo de atratividade, pode até ser atrativo do ponto de vista de preço, mas deficiente do ponto de vista tecnológico. Você vai estar se limitando da mesma forma. 

No 500 vocês botaram tudo para justificar. Pagou 260 num carro pequeninho.

Vai ser caro, porque todo elétrico é muito mais caro que um carro a combustão normal, mas você vai levar tudo de disponibilidade hoje dentro do nosso universo.

Carlos Tavares que carros elétricos iriam torná-los inacessíveis a classe média. A gente tem uma perspectiva diferente?

Todas as montadoras estão investindo pesadamente em carro elétrico. A projeção é que em alguns mercados, a partir de 26 a 30 você atingiria uma equiparaçào com o veículo convencional. Isso varia muito. Tem que ter cuidado porque antes da pandemia a gente tinha uma previsão mas hoje, em que não terminou a crise dos microchips e não terminou o  impacto inflacionário de vários lados que foi muito grande. 

Então é difícil a gente afirmar. A gente tem uma cadeia razoável de industrialização e uma capacidade grande de desenvolvimento e engenharia muito capacitados. 

É uma virada de chave do ponto de vista industrial quando você vai falar de um carro 100% elétrico com esse tipo de tecnologia. Obviamente já temos algums veículos que são assim. Tem uma perspectiva diferente mas o nível de investimento é muito alto para um mercado que vai demorar a se desenvolver em termos de volume. AS escolhas precisam ser muito bem feitas, muito bem direcionadas. FAz parte do nosso plano, mas a questão custo é um grande desafio.

Autônomos, tempestade perfeita. Será que as pessoas deixarão de ser proprietários 

É uma ótima pergunta. A gente acredita que existe um potencial quando a gente fala de veículos autônomos, tem até rodando comercialmente alguns perímetros nos EUA. Obviamente pode se desenvolver um negócio aí. Mas quando a gente olha nossa realidade a gente já temos prestadores de servico que fazem isso hoje, sejam apps sejam taxis. É uma mudança talvez do processo do modelo mas com o mesmo fim. Isso substitui a propriedade do automóvel? Não necessariamente. 

Então a gente acredita que, assim como a tecnologia vai sendo agregada, ela se desenvolve e a tendência é de que o curso começa a cair. Isso é nossa projeção para o elétrico e vai ser nossa projeção para outras tecnologias. E também o consumidor vai optar por ter ou não ter isso embarcado. Aí é uma escolha do próprio consumidor, assim como acontece com smartphone: você quer ter a última geração ou um básico resolve sua vida. 

Então acho que nós vamosi ter um modelo bem diversificado entre propriedade e essas outras possibilidades.

E quando a conta fecha?

Do ponto de vista do gasto de combustível, a gente tem que olhar toda a cadeia. A produção do elétrico ainda é mais suja. E pra quem quer ser carbon net zero, nós temos esse compromisso, você tem que rever também toda sua cadeia. É uma equação muito complexa de ser resolvida. Pro consumidor a gente pode até conseguir fazer uma conta teórica mas vai depender do valor residual. O consumidor dos EUA tem um perfil muito diferente do consumidor brasileiro, troca de carro a cada três anos historicamente. E o valor residual para o americano, o carro usado vale muito menos. A gente não tem histórico aqui no Brasil ainda pra afirmar quanto vai valer o carro daqui a três anos, cinco anos, a garantia, a bateria, mais ou menos oito anos. 

A bateria é uma grande questão, ela tem um prazo de validade. É possível trocar? É possível, mas hoje vai ser muito caro. É possível recondicionar, uma segunda vida estacionária. O residual é o grande diferencial nessa conta. Quanto vai valer meu carro quando eu for trocar.

A maré elétrica

Tem que tirar um pouco da ansiedade eu acho. Porque os veículos elétricos que estão disponíveis no mundo, a maioria deles, estão chegando aqui ou a gente tem uma grande disponibilidade. Do mais barato ao mais caro, do urbano ao comercial. Mas o desafio do custo é presente aqui e lá fora. Coimo vamos endereçar isso? É o grande ponto dessa discussão.