O trabalho remoto já existia antes da pandemia da Covid-19 assolar o mundo, mas desde que o coronavírus começou a se espalhar, o teletrabalho passou a englobar mais funcionários. Junto a isso, chegam algumas dúvidas dos trabalhadores, como o direito à desconexão. Como fica o momento fora do trabalho agora que as modalidades remotas e híbridas são adotadas de vez?
Primeiro, é preciso entender o que é o direito à desconexão. O nome pode até parecer que tem a ver com a internet, mas é algo mais amplo. Ele não está nominalmente previsto na legislação, mas é fruto da interpretação. Em entrevista ao Olhar Digital, o advogado Leonardo Camello, presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Pernambuco e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Pernambuco (OAB-PE), explicou essa desconexão.
“É o direito que o empregado tem de, durante alguns intervalos de tempo, não estar mentalmente e materialmente ligado ao trabalho para que possa desenvolver outras atividades, de cunho familiar, social, relativo à saúde e até enriquecimento cultural. Visa estabelecer esses intervalos em que ele pode efetivamente se desconectar, se desvencilhar do trabalho para cuidar de atividades tão ou mais importantes que o próprio trabalho em si”, destacou.
A jornada básica de trabalho prevista em lei cita oito horas de trabalho diárias, 44 horas semanais. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) também tem mais parâmetros, como intervalos para almoço, chamado o intervalo intrajornada (dentro da jornada) e o intervalo interjornada, aquele do fim de um dia de trabalho para o começo do outro. Nesses intervalos, nenhum trabalho deve ser realizado. É o momento do empregado dormir, praticar esportes ou ter lazer.
Mas, caso haja a necessidade, pontual, de trabalhar nesses períodos, o trabalhador tem direito a receber o pagamento de horas extras ou uma folga compensatória. No mundo ideal, nem o chefe contata o empregado, nem o funcionário responde ao chamado, ou apenas avisa que está em seu intervalo. Claro que isso se torna difícil em alguns momentos. Mas isso não pode se tornar constante.
“O que tem preocupado a comunidade jurídica são contratos de trabalho onde o direito à desconexão é desrespeitado sistematicamente. Com o avanço do teletrabalho, inclusive, pela má interpretação da lei, tem sido muito comum isso acontecer”, emendou Leonardo Camello.
O direito à desconexão no teletrabalho
O problema se ampliou, de acordo com o advogado trabalhista, pela falha no legislador ao incorporar o trabalho remoto à CLT e a falha de interpretação dos operadores do direito. A reforma trabalhista de novembro de 2017 alterou a consolidação, inclusive no artigo 62, onde prevê as hipóteses de exceção de jornada de trabalha, prevendo ainda o teletrabalho.
“A regra do trabalho, da prestação laboral, é ter uma jornada definida. Essa é a regra. Mas a legislação reconhece que em alguns casos é impossível o empregador fixar a rotina do empregado, fixar o controle e a fiscalização dessa rotina”, disse. Para Camello, contudo, boa parte dos trabalhos remotos podem sim ter um controle e fiscalização de jornada.
“Eu arrisco dizer que a maior parte do teletrabalho nem permite isso, porque todo mundo que faz, pelas plataformas digitais como Google, Zoom, WhatsApp, pelos sistemas das empresas, geralmente tem como saber o horário de login e o horário de logout do funcionário. Você pode até não controlar a jornada na prática, não anotar os horários, mas tem como controlar”, avaliou.
Por causa disso, o presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Pernambuco destaca que é ilegal um trabalho que impõe ao funcionário uma rotina de nítida violação sem um patamar mínimo aceitável de descanso. Todo ser humano tem o direito à desconexão.
“É inegável que a gente não pode ter como paradigma de contrato de trabalho, em pleno 2022, os modelos que a CLT originalmente estipulou em 1943. Quem não reconhecer essa modernidade, está obsoleto. Mas também é inegável que não podemos, a esse pretexto, deixar de estabelecer o patamar mínimo do contrato de trabalho civilizado, racional”, acrescentou.
Infelizmente, uma das áreas em que o advogado mais vê a violação ao direito do empregado à desconexão é o setor de tecnologia. As empresas interpretam o dispositivo legal de maneira literal, ignorando a questão de horas por dia, sem gerar a hora extra ou a folga. A CLT não pode ser interpretada desconsiderando preceitos constitucionais.
“Está na constituição: o trabalho deve dignificar a conduta humana. Eu não posso ter um trabalho degradante, um trabalho que inviabilize o convívio social e familiar do empregado. Aliás, a família na constituição é colocada como um bem maior do estado democrático de direito. O trabalho, na constituição, é atrelado a um valor social”, explicou Camello.
Consequências para trabalhador e empresa
As consequências da violação do direito à desconexão são de diferentes esferas. Citando estudos médicos, o advogado Leonardo Camello destaca que a privação do momento pessoal deixa o empregado mais cansado e psicologicamente esgotado, tendo também um prejuízo familiar, social, acadêmico e cultural.
“Imagina essa pessoa no convívio social, que tipo de ser humano nós teremos? Com um carro, dirigindo no trânsito, os atos que vai tomar no exercício profissional?”, questiona.
E, para as empresas, se não houver a compensação daquele trabalho fora de jornada, é possível sofrer uma ação trabalhista para reparar o abalo causado, chegando até a uma queixa no Ministério Público do Trabalho (MPT). Cabe também uma possível indenização por dano moral.
“Se é violado em face de toda uma categoria, grupo de empregados, passa a ter um efeito para a sociedade. Se for algo sistematizado, pode gerar uma investigação do MPT, que vai agindo no interesse da sociedade investigar aquele empresa e, se não assinar um termo de ajuste de conduta para melhorar a prática, vai acontecer uma ação civil pública onde se cobrará um dano moral coletivo. Ou seja, uma indenização por danos morais contra esse empregador em nome da sociedade para que ele deixe de praticar aquela conduta que viola não apenas o direito de A ou B, mas da coletividade. É uma situação séria. Tudo visando que aquilo não mais se repita”, concluiu Leonardo Camello.
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Fonte: Olhar Digital
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