“Sandman” chegou na Netflix no dia 5 de agosto e já ganhou não só uma boa audiência, mas notoriedade nas redes sociais. A série, baseada no livro homônimo de Neil Gaiman, conta a história do Rei dos Sonhos, Morpheus, que tenta restaurar seu poder e retomar o controle dos sonhos e pesadelos.
No decorrer da produção foi abordada uma condição chamada ‘doença do sono’, algo que, devido a forma como foi apresentada na série, gerou uma nuvem de dúvidas sobre a cabeça dos fãs: afinal, existiu ou não essa enfermidade? (vamos apenas até aqui no que diz respeito a série para não dar spoilers).
Sim! A doença do sono existiu e, com o passar dos anos, ganhou o nome de encefalite letárgica. A citação da doença na série é, inclusive, baseada diretamente no surto, que começou em meados de 1910 (alguns estudos apontam 1915). A condição matou cerca de um milhão de pessoas e deixou quase quatro milhões em um estado catatônico por décadas, incapazes de falar ou de se mover de forma independente, um tipo de “estátuas vivas”, conforme reportagem da BBC News.
O que é a encefalite letárgica?
De acordo com os físicos Jean-René Cruchet, da França, e Baron Constantin Von Economo, da Áustria – um dos primeiros a escrever sobre a doença entre 1916 e 1917, embora Hipócrates, o grande médico da Grécia Antiga, também tenha descrito a doença sob o nome de lethargus – uma causa específica para a epidemia de encefalite letárgica (E.L.) não foi desvendada, no entanto, os sintomas iniciais – antes da pessoa cair no sono – eram parecidos com os da gripe. Os sinais neurológicos também se desenvolviam rapidamente, quase que de uma hora para a outra.
“A encefalite letárgica aguda geralmente se apresentava como um início gradual de sintomas semelhantes aos da gripe, incluindo mal-estar, febre baixa, faringite, calafrios, dor de cabeça, vertigem e vômito. Os sintomas neurológicos se seguiam e podiam se apresentar muito rapidamente, como no caso de uma garota que experimentou uma hemiplegia (paralisia) repentina enquanto caminhava para casa depois de um concerto. Dentro de meia hora ela estava dormindo e morreu 12 dias depois”, escreveram os pesquisadores Leslie A Hoffman e Joel A Vilensky, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, no artigo “Encefalite letárgica: 100 anos após a epidemia”, publicado na revista científica Brain.
Em 1966, Oliver Sacks, um jovem neurologista britânico, chegou ao Hospital Beth Abraham, no Bronx, em Nova York, onde havia dezenas de pacientes com encefalite letárgica.
“Eu nunca tinha visto nada assim: tantos pacientes como aqueles imóveis, às vezes pareciam estar congelados em posições inusitadas, e você se perguntava: o que está acontecendo? Tem alguém vivo lá dentro?”, disse Sacks à BBC nos anos 1970.
Sacks foi o responsável por criar uma “solução musical” que estimulava o sistema motor dos pacientes. O médico escreveu à Concetta Tomaino, também médica e hoje diretora e cofundadora do Instituto de Música e Função Neurológica de Nova York, explicando sua descoberta e a convidando para pesquisas na área.
“Ele me escreveu um bilhete que dizia: ‘Toda doença é um problema musical, toda cura, uma solução musical’.”
Junto à terapia de música, Sacks também passou a testar um novo medicamento que é usado para tratar pessoas com doença de Parkinson. Para ele, a condição poderia ser uma forma extrema de Parkinson, assim, administrou o levodopa nos pacientes.
O Tempo do Despertar
“Lola havia passado décadas em estado catatônico e seu despertar ocorreu em segundos. Ela pulou da cadeira e começou a falar. Foi uma cena incrível, e eu duvidaria da minha própria memória, se não fosse respaldada por todas as outras pessoas que também se lembram”, recordou Sacks, também à BBC.
Muitos haviam contraído a doença do sono na infância e despertaram como adultos de meia-idade em um mundo completamente diferente. “Quando conseguiram entender quanto tempo havia se passado, ficaram com medo e estupefatos. Alguns ficaram amargurados por terem perdido tanto tempo, mas a maioria queria viver cada segundo que tinha”, contou Tomaino.
O médico escreveu um livro, intitulado “Tempo do Despertar”, para contar sobre a doença e os resultados dos tratamentos. Mais tarde, a obra virou um filme com o mesmo nome, que foi estrelado por Robert De Niro e Robin Williams.
Mas, infelizmente, com o tempo o medicamento deixou de fazer efeito. Alguns pacientes mantiveram mais funções que outros, mas nenhum se recuperou completamente novamente. Enquanto acordados, Sacks pediu para que alguns pacientes relatassem o que sentiam e como era quando estavam dormindo e eles descreveram como os cuidados médicos eram “horríveis”. Segundo o especialista, ” isso ajudou a mudar a maneira como os tratávamos”. A música continuou sendo uma solução.
Conforme levantamento do Jornal O Globo, até hoje não se sabe ainda qual foi a causa exata do desenvolvimento da doença. Especulações apontam para uma possível ligação com infecções virais, inclusive com o patógeno responsável pela pandemia da gripe espanhola, mas um motivo exato e comprovado não foi encontrado, principalmente a respeito dos impactos no cérebro.
“Após 100 anos de pesquisa, a etiologia (causa) da encefalite letárgica ainda é desconhecida. Embora várias teorias tenham sido propostas, existem duas categorias principais de etiologias plausíveis: ambientais (toxicológicas) e infecciosas (virais, bacterianas, etc.). Mais recentemente, no entanto, há evidências para apoiar uma terceira teoria: auto-imunidade. Também é possível que a encefalite letárgica tenha múltiplas causas, o que poderia explicar a ampla gama de hipóteses etiológicas que foram avançadas ao longo dos anos”, concluíram os pesquisadores Hoffman e Vilensky no artigo publicado na Brain.
Fonte: Olhar Digital
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