Que a tecnologia avança a passos largos não é novidade. Mas, quando nos deparamos com uma ascensão relacionada à saúde e que visa a inclusão social, o coração chega a ficar “quentinho” — como dizem por aí. Esse é o caso de Neide Sellin, professora graduada em Ciência da Computação, que desenvolveu um cão-guia robô chamado Lysa. O nome teve como inspiração o primeiro computador criado por Steve Jobs — e que acabou, também, batizando sua primeira filha, Lisa Brennan-Jobs.
“Havia uma aluna na escola com deficiência visual com quem conversei para entender suas dificuldades no dia a dia e, a partir dessa conversa, surgiu a ideia de desenvolver um tipo de cão-guia robô”, contou Sellin, que dava aulas na Escola Municipal Clóvis Borges Miguel, no município de Serra (ES).
O passo seguinte da educadora foi fazer uma pesquisa com mais de 20 pessoas com deficiência visual para conhecer seus principais desafios e complementar o projeto. O desenvolvimento de um protótipo foi então realizado em 2011. Em 2014, registrou sua startup e se aprofundou na pesquisa. Ela desenvolveu uma plataforma robótica completa, com inteligência artificial, navegação autônoma, malha de sensores e um aplicativo que detecta objetos, obstáculos e profundidade, além de conseguir informar se há algo à frente, evitando colisões.
Como funciona o robô-guia Lysa?
Esta é uma tecnologia pioneira no mundo com capacidade de ajudar milhares de pessoas. Podemos dizer que é uma nova forma das pessoas ‘enxergarem’ o mundo. Melhorar a vida das pessoas a partir do desenvolvimento de tecnologias era um sonho antigo, que foi ganhando cada vez mais espaço na minha vida. O projeto deu origem a uma startup e hoje estamos todos determinados a finalizar o produto e disponibilizá-lo o mais rápido possível para o mercado.
Neide Sellin
Lysa tem duas versões: enquanto a Indoor é adequada para ambientes fechados sendo mapeada, a Outdoor tem como objetivo ser um modelo mais atualizado que alcança a vida real dos cães-guia também fora de casa. Por isso, é indicada para ir às ruas e a ambientes abertos.
“Ela pode molhar, sobe e desce escadas, navega de forma mais alinhada com as ruas. Então, a tecnologia está mais preparada para ambientes externos”, disse a criadora.
O investimento e a evolução de Lysa
De acordo com Neide Sellin, o protótipo inicial do robô, feito em 2011, foi construído com sucata e outros materiais. Para aprimorar o projeto, a educadora precisou conquistar recursos do CNPq, FAPESP, FINEP, FAPES, SEBRAE e FINEP. Esses investimentos permitiram o avanço das pesquisas, inclusive a adaptação do design para comportar inovações e potencializar a sua eficiência.
A professora passou também por grandes veículos midiáticos, como o antigo Caldeirão do Huck, da TV Globo, a fim de angariar ainda mais verbas — a notoriedade permitiu atualizações em Lysa, impactando inclusive sua versão atual, feita com auxílio de impressoras 3D. Assista abaixo o vídeo e veja detalhes do robô cão-guia.
“O caminho percorrido entre a concepção da Lysa e o seu lançamento, em 2017, foi de trabalho duro em busca de investimentos, para que pudéssemos avançar com pesquisas e produção dos protótipos, contar com maior número de pessoas capacitadas na equipe, além de construir presença no mercado”, acrescentou a professora.
Em conversa exclusiva com o Olhar Digital, a cientista revelou que, desde o início do projeto, o valor total de investimento no cão-guia robô foi de aproximadamente R$ 6 milhões. E ainda há margem para avançar mais: “Faltam algumas coisas, como testar nas ruas e a validação de instituições que atendem as pessoas com deficiência visual para que ele seja entregue com segurança às pessoas”, pontuou Sellin, destacando que as parcerias podem aumentar.
Mulher, cientista e empreendedora
Entre mais um dos obstáculos superados para que Lysa saísse do papel, Neide Sellin também precisou enfrentar a desconfiança de muitos, baseados em preconceitos, como sexismo e misoginia.
“Muitos desconfiam da efetividade do produto, dos resultados apresentados e até da nossa autoria em iniciativas que ganham visibilidade e reconhecimento. Já me deparei com situações em que me perguntaram quem era o autor da ideia da Lysa, e quando dizia ser eu, uma mulher, as pessoas demoravam um certo tempo para acreditar”, contou.
Os desafios das mulheres na área de tecnologia, embora esteja crescendo e ganhando destaque, é mostrado também em pesquisas. Segundo o relatório “Profissionais de tecnologia no Brasil em 2021”, a presença feminina no mercado ainda é baixa — elas ocupam 12,7% dos postos de trabalho, segundo informações levantadas pela Revelo.
Além disso, outro estudo mostrou que 81% das mulheres do setor de TI já passaram por algum tipo de discriminação de gênero. Esse levantamento também apontou que, para 82% dessas entrevistadas, o maior desafio é ter que provar, a todo momento, a própria competência técnica. Esse número é 40% acima do registrado em 2019, quando 42% das respondentes acreditavam que este era o maior problema enfrentado no ambiente de trabalho.
Como ter uma Lysa?
Segundo o IBGE, existem cerca de 10 milhões de pessoas com deficiência visual no Brasil. Destas, 7 milhões possuem graus mais severos. Segundo informações do Instituo Magnus, existem menos de 200 cães-guias em atividade no país. Ao mesmo tempo, há uma lista de espera que conta com mais de 700 pessoas aguardando pelo cão de assistência.
O Instituto Magnus é considerado o maior centro de treinamento de cão-guia da América Latina, um dos poucos capacitados para o tipo de formação. O treinamento de cada cachorro, que começa com ele filhote, custa em média R$ 60 mil ao instituto — que funciona como uma entidade de assistência social, sem fins lucrativos, a partir de doações. Quem deseja obter um cão-guia através do instituto precisa se inscrever em um dos programas da organização e atender aos critérios para ser selecionado.
Para ter uma Lysa, no entanto, também é necessário treinamento e investimento. Ainda ao Olhar Digital, a criadora explicou que para ter o cão-guia robô é necessário entrar em contato com a Vixsytem, startup responsável pelo projeto.
“Já tem pessoas andando com a Lysa. No Hospital Albert Einstein, por exemplo, tem um funcionário que usa. E teremos também uma possibilidade de diversas pessoas usarem no MAM [Museu de Arte Moderna de São Paulo]. Será iniciada uma exposição em fevereiro e todos os deficientes visuais poderão ‘ver as obras’ e ter acessibilidade à arte também. Aqui em Serra tem uma pessoa que [também] já usa, é a primeira, mas ainda em fase de teste.”
O cão-guia robô custa R$ 24.900, podendo o valor ser financiado. Há também opções de assinaturas mensais para alocar o equipamento. Segundo a empresa responsável por Lysa, o preço é cobrado conforme os quilômetros dos mapeamentos do robô, algo a partir de R$ 2 mil mensal.
Reconhecimento internacional
Lysa foi um dos projetos citados no TOP 12 Global de Startups no “SLINGSHOT 2021”, realizado em Singapura no ano passado. O robô ficou entre os três melhores na categoria “Cidades Inteligentes”, que premia projetos com maior capacidade de atender demandas sem perder a qualidade. Lysa concorreu com iniciativas de 5 mil startups inscritas na premiação.
Ainda em 2021, a tecnologia de Lysa foi adotada pela escola EEEM Prof Renato José da Costa Pacheco, de Vitória (ES). A unidade de ensino se tornou a primeira no Brasil a proporcionar aos alunos com deficiência visual a possibilidade de circular com mais autonomia.
Já em 2022, a professora foi convidada a participar da celebração de 20 anos do prêmio Cartier Women’s Initiative, que homenageia mulheres empreendedoras do mundo todo. Em 2018, ela foi uma das ganhadoras do prêmio.
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Fonte: Olhar Digital
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