No dia 24 de fevereiro de 2022, o mundo foi tomado por uma incerteza. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou uma “operação militar especial” na Ucrânia. O Kremlin, até hoje, evita o uso da palavra “guerra”. Mas é exatamente isso que Moscou começou naquele dia. Inicialmente, especialistas indicavam que o exército russo poderia tomar Kiev em cerca de 48h. Essa previsão tinha como base, inclusive, dados do serviço de inteligência dos Estados Unidos. 365 dias depois, a Ucrânia ainda resiste e a guerra não tem qualquer perspectiva de acabar – nem por uma supremacia militar e nem por diplomacia.
Poderio bélico e tecnológico
Especialistas consultados pelo Olhar Digital são unânimes: as tropas ucranianas foram subestimadas. Em primeiro lugar, estamos falando de um país industrializado e urbanizado. Não é uma situação comparável, portanto, a Afeganistão e Iraque, por exemplo. Embora esses dois países tenham vantagens geográficas – como muitas montanhas, que dificultam uma invasão mecanizada e blindada em larga escala -, a Ucrânia tem uma força militar terrestre muito forte. É o que explicou Tito Lívio Barcellos Pereira, geógrafo pela USP, mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e Segurança pela UFF e doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto SanTiago Dantas:
É uma das forças militares mais bem aparelhadas, não apenas da Europa Oriental. A força terrestre ucraniana é comparável e superior numericamente à maioria dos países europeus. Estamos falando de um país com uma frota de 2 mil tanques, mais de 250 mil soldados e grande capacidade de mobilização de reservistas – 2 milhões de pessoas, pelo menos. Ao longo da guerra, foram mobilizando a população adulta, podendo chegar a 7 milhões.
Outro fator apontado é que, desde 2014, com a anexação da Crimeia, a Ucrânia se preparou defensivamente para uma invasão russa. Foram montadas trincheiras, bunkers e campos minados. Para além do poderio militar ucraniano, Tito Lívio entende que houve um erro de avaliação de Moscou. Segundo ele, a Rússia teria condições de levar maior poder de fogo. Os russos acharam que, devido a uma similaridade étnica, teriam levantes internos que facilitaram a ocupação e a anexação de territórios.
Abaixo, mostramos uma tabela com a comparação financeira e militar da Rússia e da Ucrânia com quatro grandes potências europeias: Reino Unido, França, Alemanha e Itália. As tropas de Moscou lideram com folga. Mas Kiev também tem bons números, mesmo com um orçamento menor.
Orçamento de defesa (US$ bilhões) | Tanques | Veículos blindados | Artilharia autopropulsada* | Artilharia de campo** | |
Rússia | 82,6 | 12,5 mil | 151,6 mil | 6,5 mil | 4,3 mil |
Ucrânia | 30 | 1.890 | 37 mil | 953 | 889 |
Reino Unido | 50,2 | 227 | 73,2 mil | 89 | 126 |
França | 45,9 | 222 | 72,6 mil | 90 | 12 |
Alemanha | 52,3 | 266 | 68,6 mil | 121 | 0 |
Itália | 37 | 197 | 68,5 mil | 68 | 108 |
*Artilharia autopropulsada: com grande mobilidade; montada em veículos terrestres.
**Artilharia de campo: precisa ser rebocada por veículos maiores.
Como mostra a tabela, a Rússia tem números muito maiores que os da Ucrânia. Essa diferença não implica, porém, em um despreparo ucraniano. Ao longo do último ano, além de frear o avanço das tropas de Putin, Kiev conseguiu até retomar territórios em contraofensivas.
Em setembro do ano passado, o Kremlin fez “referendos” não reconhecidos pela comunidade internacional dentro das regiões separatistas da Ucrânia de Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhia – que correspondem a cerca de 15% do território do país. Os residentes, segundo a Rússia, votaram pela anexação por parte de Moscou.
Todas essas regiões foram ocupadas pela Rússia. Em novembro, porém, a Ucrânia recuperou o controle sobre Kherson. Zaporizhzhia ainda é um local de embates constantes. Vladimir Putin tenta o controle total de Luhansk e Donestk, que compõem o Donbas. O Ministério da Defesa do Reino Unido estima que a Ucrânia libertou mais da metade do território capturado pela Rússia.
O mapa abaixo mostra as regiões que a Rússia anexaria depois dos “referendos”.
Ajuda bélica e tecnológica das grandes potências
Desde o começo da invasão, a Ucrânia passou a receber armamentos e tecnologias de outros países – o que não é suficiente para mudar o jogo, mas ajuda. A avaliação é de Augusto Teixeira, doutor em Ciência Política com estágio pós-doutoral em Ciências Militares pelo IMM ECEME, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da UFPB e pesquisador do PROCAD-DEFESA CAPES: “Mísseis e Foguetes na Defesa Nacional”:
Os equipamentos enviados pela União Europeia, Reino Unido, Estados Unidos e Canadá são importantes para permitir à Ucrânia um poder de combate à altura de seus objetivos ofensivos e defensivos. Por sua vez, como advento do sistema de lançamento de misseis e foguetes de longas distâncias, ocorreu outro aspecto importante. A Rússia, ao se utilizar de forma mais prudente da sua aviação, a substituindo por drones e mísseis, teve um elemento de redução de exposição ao risco. Quando a Ucrânia passa a receber de países ocidentais esse sistema, como os HIMARS (High Mobility Artillery Rocket System), passou a conseguir afetar a dinâmica do campo de batalha. Forças ucranianas puderam neutralizar a retaguarda do inimigo, forçando uma reacomodação das forças russas.
Augusto Teixeira pontua, ainda, a importância do apoio de países e empresas com o fornecimento de imagens de satélite. Essa é, também, uma guerra centrada em redes, imagens, geoposicionamento de satélites e coordenadas informadas pelo Ocidente. Além dos carros de combate, tanques, mísseis, drones e armamentos, Kiev recebeu apoio dos satélites da Starlink (para sinal de internet e comunicação) e de inteligência dos Estados Unidos e da Europa.
Por isso, a tecnologia é uma variável entre outras variáveis, na avaliação do professor:
A guerra também é tecnológica. Ela tem uma expressão política, militar, organizacional, social e tecnológica. Nesse sentido, todo o apoio fornecido por países ocidentais é importante para dotar o país de capacidades – em termos de equipamentos, logística, inteligência e treinamento. Tecnologia é um componente fundamental da guerra, mas ela, por si só, não vence guerra. Se cairmos no canto da sereia de que novas armas mudarão o rumo do conflito, cairíamos no mesmo canto da sereia das “armas maravilhosas”, que os alemães pensavam na Segunda Guerra Mundial. O que estamos vendo agora é que a guerra é um fenômeno multicausal.
Essa ressalva do professor Augusto Teixeira é endossada pelo geógrafo Tito Lívio. Segundo ele, apesar da importância das armas do ocidente, desde o começo da guerra, pipocaram notícias de que se Kiev adotasse um determinado equipamento poderia mudar o curso da invasão:
Essa é uma visão exagerada. No começo, eram os mísseis antitanque dos Estados Unidos. Depois os drones turcos. Já foram os drones suicidas americanos, os canhões de longo alcance de Washington, lançadores de foguetes múltiplos norte-americanos, e, agora, se fala mais nos tanques alemães, americanos e britânicos. Outra aposta do momento é a possível chegada dos caças F16. Mesmo que essas armas tenham trazido um aumento do poder de fogo, elas não podem virar o jogo. Até porque os russos se adaptaram, capturaram e destruíram parte dos equipamentos. A guerra tem essa dinâmica, é um embate entre duas forças vivas.
Em suma, a Ucrânia já tinha uma boa estrutura militar, recebeu armas importantes para nivelar o combate e a Rússia não está com todo poder de fogo no campo de batalha. Além da avaliação inicial equivocada de possíveis levantes populares pró-Rússia na Ucrânia, seguir sem todo o efeito disponível tem a ver com uma estratégia prática, logística e política de Moscou. Movimentando todo o aparato militar, áreas podem ficar mais vulneráveis a ataques externos. Ao mesmo tempo, uma mobilização geral tiraria a premissa de Vladimir Putin de que não se trata de uma guerra – e sim de uma operação militar especial. Um estado de guerra também tem impactos econômicos. Toda a economia civil é convertida em esforço militar, o que não seria interessante ao Kremlin.
O geógrafo Tito Lívio explica que a guerra moderna não requer apenas soldados, requer equipamentos – soldados armados, blindados, tanques, artilharia, aviação, sistemas antiaéreos, ou seja, uma interdependência de vários sistemas, inclusive de comunicação. E esse foi uma grande trunfo da OTAN, que compartilhou suas linhas de comunicação e imagens de satélites para a Ucrânia se antecipar a ações russas.
Uma verdade inconveniente
O fim da guerra, não necessariamente, depende de uma vitória militar por alguma das partes. É possível, principalmente, pela diplomacia. Mas os “senhores da guerra” não parecem tão interessados nisso, por enquanto. O geógrafo Tito Lívio fala que o parque industrial russo aumentou desde a invasão. Ao mesmo tempo, as guerras modernas acabam servido de laboratório para a exibição de novos armamentos:
A indústria armamentista lucra muito com isso. Poucos países são responsáveis pela maior parte dos armamentos consumidos no mundo. EUA, Rússia, França, Alemanha, China, Israel e Reino Unido, principalmente. A Ucrânia é um laboratório onde armas vão mostrar sua eficiência para angariar novos clientes. Tanto é que, nas bolsas americanas, você tem um grande aumento no valor das ações de empresas bélicas, como Lockheed Martin, Boeing, Northrop Grumman, General Dynamics Corp. Assim como ocorreu na Síria e na Líbia, as forças russas também aproveitaram para testar armamentos e capacidades.
A Rússia é o segundo maior exportador de armamentos do mundo, atrás dos EUA, mesmo com todas as sanções impostas pelo Ocidente. As promessas ocidentais à Ucrânia acabam sendo paliativas e até de propaganda. Segundo Tito Lívio, esse comprometimento da Otan, “se quiser ser bem-sucedido, precisa ser de fato”. Enquanto houver resistência de membros importantes da organização, dificilmente dará para reverter todas as perdas territoriais que a Ucrânia teve neste último ano.
E é aí que entra um outro fator determinante para a continuidade da guerra: neste momento, o fim não é interessante porque os dois lados têm muito a perder. A Ucrânia tem territórios ocupados e não pode abrir mão – afinal, foi invadida. A Rússia não atingiu seus objetivos e não pode sair por baixo. Vladimir Putin dizia que a “operação militar” tinha o intuito de desmilitarizar e “desnazificar” a Ucrânia. Moscou também focava em Donetsk e Luhansk, onde há separatistas apoiados pelos russos. Putin acusa Kiev de genocídio contra ucranianos de origem étnica russa nessas duas regiões. Além disso, o Kremlin queria frear o avanço da Otan pelo Leste Europeu, a possibilidade de adesão da Ucrânia à aliança militar e restabelecer a zona de influência da União Soviética. Nada disso aconteceu, pelo contrário. Territórios pretendidos não foram totalmente dominados e a Otan está mais próxima e ativa desde a invasão.
O cientista político Vicente Ferraro, pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP, explica que a geopolítica também é decisiva para a guerra ter chegado a um ano:
Ao contrário do argumento de Vladimir Putin, que queria afastar a Otan, a guerra acabou fortalecendo a Otan no leste europeu. A Ucrânia ganhou fôlego com os equipamentos enviados pelo Ocidente, o que permitiu, por exemplo, a retomada de Kherson. O prolongamento da guerra, no entanto, favorece a Rússia. Quanto mais o tempo passa, maior é o risco de a Ucrânia perder apoio dessa coalizão com o ocidente.
Matheus de Carvalho Hernandez, professor de Relações Internacionais e Coordenador do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande Dourados, aponta que a maneira como a Rússia promoveu a guerra também é determinante para a longa duração da invasão:
Entrou de uma maneira a violar flagrantemente o direito internacional, numa guerra à moda antiga. Com isso, a Rússia teve poucos aliados que engrossassem sua posição. Mesmo o apoio não-ocidental, como China e Índia, não vem de uma maneira enfática – tanto politicamente, quanto em termos de recursos. Além disso, a propaganda interna russa consegue blindar a população da abordagem ocidental da guerra. Então, no público interno, o não-apoio ao Kremlin não é suficiente para frear Vladimir Putin.
Outro fator importante, segundo Matheus de Carvalho Hernandez, está na posição ocidental. O apoio militar não veio tão rápido quanto a Ucrânia queria. A Otan parece muito cautelosa em como adentrar essa guerra. Sem contar um eventual interesse da organização e de algumas potências ocidentais na manutenção do conflito, porque ele mantém uma arma apontada para Putin o tempo todo. Não só no sentido da guerra, mas pela expectativa de se desestabilizar internamente o governo russo com a sequência do confronto. Por fim, segundo o professor, não houve capacidade mediadora de um terceiro ator – a ONU teve um desempenho inicial vacilante, segundo Matheus de Carvalho Hernandez. E no próprio Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Rússia tem poder de veto – o que também dificulta o papel da entidade.
Há uma elite nos países ocidentes muito satisfeita com o incremento do orçamento bélico. Tem gente se satisfazendo politicamente e também ganhando dinheiro com o fortalecimento das indústrias nacionais de guerra. Nesse sentido, a guerra tende a continuar e as ajudas militares também.
A vida na Ucrânia
Clara Magalhães é uma das criadoras da Frente BrazUcra, que tem atuado ativamente na guerra. Ela chegou à Ucrânia em 27 de fevereiro, mas os trabalhos começaram no mesmo dia da invasão. No começo, o foco era auxiliar as evacuações no oeste do país. Agora, a rede se expandiu. O grupo atua, por exemplo, a apenas 3 quilômetros do front russo e nas linhas de frente, fazendo entregas. Neste momento, segundo Clara Magalhães, existem “duas Ucrânias”: oeste e leste.
O país como um todo tem um fluxo estável de energia, internet e telefone. Por toda a Ucrânia, tem um rodízio de 4 horas com energia, 4 horas sem. Lugares muito perto do front sofrem mais com o baixo sinal de internet, escassez de energia, sinal telefônico e água. A oeste, a vida é muito mais normal, segundo Clara Magalhães. O nível de ameaça é muito inferior, apesar dos ataques aéreos.
Quando perguntamos o que é uma vida “mais normal” dentro de uma guerra, ela respondeu:
Viver normalmente dentro de uma guerra vai depender de quem você fala. No meu trabalho, o nosso viver normalmente dentro de uma guerra é viver longe por um mês ou mais, viver num hotel ou num carro. Cada dia é diferente. Recebemos missões pra ir a vários lugares. Isso a gente vê também em outros grupos de voluntários, muita gente nômade. Tem pessoas que trabalham, estudam, algumas foram a home office, universidades estão fechadas. A gente circula pelo país inteiro, especialmente na região de Kharkiv até a fronteira, Zaporizhzhia e Kherson. A gente vem a Oeste quando recebemos doações para estarmos aqui quando os caminhões chegam. Hoje, somos um time extremamente flexível e móvel. A gente cobre 70 mil quilômetros por mês dirigindo, dependendo das missões que temos para fazer. Os correios continuam desde o começo da guerra funcionando de forma espetacular, é muito usado por ucranianos, voluntários e organizações.
Para ajudar a Frente BrazUcra, basta acessar o Instagram do grupo voluntário e seguir o passo a passo.
A vida na Rússia
O guia de Moscou Vitaly Lezov conversou com o Olhar Digital e falou sobre diversos pontos da guerra sob a visão russa. De acordo com ele, a economia já foi impactada pelas sanções, mas não de forma “brutal”, porque Moscou tem muitas reservas. No entanto, já se fala de indústria automotora prejudicada, redução na produção de petróleo e gás, reaproveitamento de aeronaves mais antigas por falta de peças e queda no turismo internacional.
O orçamento para 2023, segundo Vitaly Lezov, é considerado deficitário. O preço dos serviços subiu e os salários não acompanharam essa alta. Mas existe um aspecto pior:
O pior de tudo é o clima de apatia e depressão que afeta a gente. Muitos russos, mesmo que sejam putinistas, abandonam o país devido ao medo da incerteza do futuro. Embora o governo nunca tenha um diálogo sério com o povo, hoje, a demagogia confusa e a eficiência baixíssima dão mais vergonha do que antes e provocam a fuga de centenas de milhares de russos, mesmo que alguns deles, repito, sejam putinistas, apoiaram a reintegração com a Crimeia em 2014, etc.
As pesquisas de opinião pública relatam uma sociedade russa preocupada com o prolongamento do conflito. Segundo Vitaly Lezov, tem “belicistas” que criticam o governo pela “passividade e perda do tempo”, indicando uma suposta incapacidade da Rússia para uma guerra de exaustão. Eles insistem numa urgente reforma do governo de Putin, suspeito de arranjos com o Ocidente. Também existem os “derrotistas”, que acham que é por meio da “operação militar” que o grupo governante quer segurar o poder por ainda mais tempo – e é por isso que as hostilidades nunca vão parar, na visão desse grupo. Vitaly Lezov ressalta, porém, que todas as enquetes de opinião pública são bastante questionáveis devido ao clima de censura e repressão. O que é certo é que não há apoio popular à política do governo, de acordo com ele:
Se falarmos do apoio visual, é zero. Não tem letra “Z” nos carros, camisas, etc. (a letra Z se tornou um símbolo da invasão russa à Ucrânia e diversos veículos de combate de Moscou têm um Z desenhado). Eu dirijo muito em Moscou, na região de Moscou e também viajei para o norte há pouco. No decorrer de todo o ano, não havia nenhum apoio visual nas ruas. Até nas fachadas dos edifícios governamentais essa letra desaparece pouco a pouco. Um contraste chocante com a fita de São Jorge onipresente em 2014, símbolo de uma série de rebeliões pró-Rússia na Ucrânia, focadas na crítica das oligarquias tanto ucranianas, quanto russas.
A guerra em números
O gráfico abaixo mostra, mês a mês, o número vítimas civis na Ucrânia. O número de mortes está em azul escuro e o de feridos em azul claro.
Imagem destacada: Tunasalmon/Shutterstock
Fonte: Olhar Digital
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