Com a invasão à Ucrânia há pouco mais de um ano, a Rússia vem vivendo verdadeiro êxodo de companhias e serviços de tecnologia. Duas das empresas mais importantes que deixaram o país foram Apple e Samsung.
Em resposta, os russos dobraram seus esforços para obter autossuficiência tecnológica, incluindo a criação de novo smartphoneAndroid.
O dispositivo, ainda sem nome, será construído pela NCC (National Computer Corporation), uma das maiores companhias de TI da Rússia, com objetivo ambíguo de vender 100 mil smartphones e tablets até o fim deste ano.
Alexander Kalinin, fundador da NCC, contou à mídia local, na última segunda-feira (27), que ele almeja investir US$ 132,9 milhões no projeto e espera obter 10% do mercado consumidor até 2026.
Comunicações limitadas?
A notícia veio alguns dias após o Departamento de Comércio dos EUA determinar o banimento das exportações para a Rússia de telefones e outros eletrônicos que custam mais de US$ 300.
Especialistas afirmam, contudo, que um smartphone russo demorará muito a bater concorrentes chineses mais baratos, além de que, naturalmente, encontrarão dificuldades para ter o Android, pertencente à americana Google.
Acho que, embora os telefones possam ser Android para começar, o Google pode não permitir a licença completa no curto prazo. Os smartphones podem precisar mudar para outro sistema operacional.
Jan Stryjak, diretor associado da Counterpoint Research, empresa de análise do setor
O Google já não oferece mais aplicativos pagos e nem atualizações para tais apps aos usuários russos, mas não os impediu de utilizar seus serviços gratuitos, como Gmail, Maps e YouTube. A WIRED questionou a subsidiária da Alphabet sobre companhias russas usarem o Android, mas não foi respondida.
Luta pela sobrevivência
O projeto de seu próprio smartphone é apenas uma das várias tentativas russas de alcançar a autossuficiência tecnológica e a soberania digital. O país prometeu fundos “sem precedentes” para desenvolver sua indústria de eletrônicos, que está tentando empresas locais.
Mas nem todos estão convencidos de que os subsídios do governo russo resultarão em novos produtos – ou se produtos, como o smartphone da NCC, serão bem-sucedidos.
“Honestamente, pelo que conheço, isso parece uma façanha de relações-públicas”, diz Karen Kazaryan, diretora-geral e fundadora do Instituto de Pesquisas da Internet, sobre o projeto de smartphone da NCC.
Em seu núcleo, a soberania digital significa controle estatal sobre a internet dentro de suas fronteiras, incluindo conteúdo, dados e infraestrutura, permitindo ao governo isolar sua “esfera online” do resto do mundo – algo visto em parte na China e na Coreia do Norte.
A Rússia começou a promover a ideia após as sanções que seguiram após a anexação da Crimeia em 2014. Em algumas formas, os esforços russos foram bem-sucedidos. Após Instagram, Facebook e Twitter serem bloqueados no país, alguns usuários russos mudaram para mídias sociais da Rússia, especialmente o VKontakte, a versão russa do Facebook.
Companhias russas, tanto privadas como estatais, também vêm tentando tirar russos de TikTok, Instagram e YouTube para suas variantes locais, como Yappy, Rossgram e RuTube. Muitas dessas plataformas, contudo, foram criticadas por designs ultrapassados, falta de usuários, ou muitas propagandas estatais.
Outro projeto local que recebeu muito estrondo foi a RuStore App, loja de apps lançada em maio do ano passado pela VKontakte e o Ministério de Desenvolvimento Digital russo para repor o Google Play e a App Store. De acordo com sua mantenedora, a RuStore App teria mais de dez milhões de usuários.
Onda de produtos e softwares próprios
A recente onda de sanções à Rússia deu novos ventos ao conceito de autossuficiência tecnológica, com o governo russo lançando múltiplas iniciativas para criar substitutos domésticos para eletrônicos estrangeiros, plataformas online e software, das quais muitas companhias locais são dependentes.
Mais de mil companhias de tecnologia param ou reduziram suas operações na Rússia após a invasão à Ucrânia. Em apenas um mês, Cisco, SAP, Oracle, IBM, TSMC, Nokia e Ericsson, bem como Samsung e Apple, deixaram o mercado, afetando indústrias inteiras, incluindo operadoras, fábricas, startups e grandes companhias estatais. Segundo a IDC, empresa de análise global de mercado, o mercado de TI da Rússia, em 2022, encolheu US$ 12,1 bilhões (39%).
O primeiro-ministro russo, Mikhail Mishustin, disse, no mês passado, que a Rússia quer repor 85% dos softwares estrangeiros com produtos locais, abrindo dezenas dos chamados centros de substituição de importação.
Entre eles, há projeto para criar um sistema operacional nacional para dispositivos. O plano, todavia, está em estágio inicial, sem roteiro à vista, de acordo com o Instituto de Pesquisa da Internet do Kazaryan.
“Atualmente, um punhado de grandes players estão tentando cortejar o governo buscando subsídios para criarem dispositivos para o ‘sistema operacional nacional’, o que quer que seja isso”, afirma.
Uma das mais promissoras alternativas ao Android é o Aurora OS, um SO para smartphones baseado no Linux feito pela Rostelecom, empresa de telecomunicações estatal.
Porém, o Aurora foi feito primariamente para uso governamental e não suporta apps Android. Em dezembro, o governo russo recusou alocar a maioria dos US$ 292,1 milhões destinados ao desenvolvimento do SO.
Outras fabricantes de smartphones, como a BQ, prometeu adaptar o HarmonyOS, da Huawei, para seus dispositivos. Contudo, não se viu progresso desde o anúncio da BQ, em setembro.
A Huawei, que é chinesa, desenvolveu seu próprio sistema operacional em 2019 após o Google parar de prover sua suíte de serviços mobile à companhia, dadas as sanções impostas pelos EUA. A gigante de TI chinesa pretende colocar o HarmonyOS em outros países além da China.
A luta da Huawei para competir fora da China mostra ser difícil para uma marca de smartphone conquistar compradores sem acesso aos serviços do Google. A Huawei perdeu quase um terço de sua receita em 2020, um ano após as sanções cortarem seu acesso ao Maps, Gmail e outros aplicativos comuns do Google. O maior obstáculo que o novo smartphone da NCC pode enfrentar, no entanto, são os telefones baratos e prontamente disponíveis da China.
Dados da Counterpoint mostram que os telefones de Xiaomi, Realme e Honor, marca de baixo custo anteriormente pertencente à Huawei, substituíram os iPhones e dispositivos Galaxy que já foram os mais vendidos, respondendo por 95% do mercado no ano passado.
“Ainda há muita concorrência”, diz Stryjak, da Counterpoint. “Não acho que haja grande lacuna no mercado para novo player.”
Outros telefones russos, o mais famoso Yotaphone, tentaram capturar o mercado doméstico, mas permaneceram em escala muito pequena, diz Stryjak. Os russos preferem marcas que já conhecem.
Graças ao comércio paralelo – importação de mercadorias sem a permissão do fabricante –, até mesmo Samsungs e iPhones ainda estão disponíveis no país. A NCC diz que pretende precificar seus smartphones entre US$ 132 e US$ 398.
“Estamos considerando várias opções. Isso pode ser produção em fábricas russas ou manufatura contratada em empresas chinesas”, disse Kalinin, da NCC, à mídia local. O NCC não respondeu ao pedido de resposta da WIRED.
Outros fabricantes de smartphones russos, como a Smartekosistema, de propriedade da gigante estatal Rostec, descobriram que não conseguiram adquirir os chips necessários da TSMC para a segunda iteração de seu aparelho, o AYYA T2. Tudo isso pode tornar a criação de concorrentes russos para Samsung ou Apple muito cara.
“Você provavelmente pode fazer um smartphone na Rússia com peças chinesas, mas não é muito eficiente”, alega Kazaryan. “E por que alguém compraria um telefone russo que é mais caro que o Xiaomi?”
Com informações de WIRED
Imagem destacada: Studio KIWI/Shutterstock
Fonte: Olhar Digital
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