Presidente nicaraguense saiu de revolucionário para autoritário e preocupa comunidade internacional; especialistas dizem que única solução para os problemas no país é a democracia
O aumento da repressão na Nicarágua tem gerado preocupação no cenário mundial, principalmente depois que o presidente do país, Daniel Ortega, tirou a cidadania de 300 nicaraguenses e os transforou em cidadão apátridas – pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país – e disseram que eram traidores da nação. No começo de março, um grupo de especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU) acusou o governo da Nicarágua de cometer violações sistemáticas dos direitos humanos, que constituem crimes contra a humanidade. “Eles são cometidos de maneira generalizada e sistemática por motivos políticos e constituem crimes de lesa-humanidade de assassinato, prisão, tortura, incluindo violência sexual, deportação e perseguição por motivos políticos”, afirmou o especialista independente Jan Simon em um comunicado à imprensa. “A população vive aterrorizada. Quase todos os meios de comunicação independentes e ONGs trabalham do exterior” e “a situação continua piorando”, insistiu Simon em entrevista coletiva em Genebra, junto da especialista colombiana Ángela María Buitrago.
Na última semana, a Nicarágua, que já caçou a concessão de veículos de imprensa e mantém prisioneiros quem é da oposição, fechou duas universidades ligadas à Igreja Católica ao privá-las de atuarem como pessoa jurídica por descumprirem a legislação, um dia após tomar medida similar contra os principais sindicatos patronais do país. O Ministério de Governo publicou no jornal oficial La Gaceta os cancelamentos das pessoas jurídicas da Universidade Juan Pablo II, com sede em Manágua e outras quatro cidades, e da Universidade Cristã Autônoma da Nicarágua (UCAN), com sede em León e outras cinco cidades. Os cancelamentos foram decretados “por estarem em descumprimento com suas obrigações conforme as leis que as regulam”, segundo resolução assinada pela ministra de governo, María Amelia Coronel Kinloch. A crítica situação no país foi desencadeada em 2021, quando Ortega venceu a eleição e deu início ao seu quatro mandato consecutivo, resultado que foi bastante contestado pela comunidade internacional.
“A história da Nicarágua é complexa, mas de um tempo para cá, Ortega tentou fazer modificações e teve protesto massivo. O estopim foram as mudanças que ele tentou passar e os protestos junto com reações violentas”, explica a professora de Relações Internacionais da ESPM Renata Álvares Gaspar, que acredita que a mudança na postura do líder nicaraguense, que foi de revolucionário que ajudou a derrotar a ditadura Somoza a presidente autoritário, seja por causa do tempo que ele está no poder. O pensamento também é defendido por Ricardo Ghizi, professor de geopolítica e coordenador do curso de administração da PUC Minas. “Ortega se apegou ao poder de tal maneira que ele não quer mais deixar. Então está perseguindo oposição, criando legião de presos políticos e tornando cidadãos apátridas e expulsando muitos desses do país. Ele está calando a oposição em uma tentativa de se perpetuar eternamente no poder”. Para Ghizi, a “Nicarágua está tomando o mesmo caminho de Cuba e Venezuela. Governos de esquerda que tomaram o poder, muitas vezes por meio de uma revolução, e acabam selando a oposição de forma que o governo não seja criticado e ele fique eternamente no poder”.
No poder desde 2007 e reeleito sucessivamente em pleitos questionados, o presidente Ortega enfrenta uma onda de condenações de diferentes países por sua inclinação autoritária. Ele tem sido criticado até mesmo por líderes de esquerda da América Latina, como Chile e Colômbia que, além de assinarem a declaração da ONU junto com outros 53 países contra ele, condenaram com agilidade a expulsão dos dissidentes nicaraguenses e a sua nova condição de apátridas decretada por Ortega. Enquanto outras lideranças se pronunciavam, o Brasil não assinou o documento e demorou a tomar uma posição, o que gerou críticas ao atual governo brasileiro que, desde a campanha eleitoral, é condenado por manter relação com países que possuem líderes autoritários. O país só mudou sua narrativa na terça-feira, 7, em uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. O representante brasileiro Tovar Nunes afirmou que o país está extremamente preocupado com a decisão do regime de Daniel Ortega de tirar a nacionalidade de mais de 300 cidadãos, incluindo os escritores Sergio Ramírez e Gioconda Belli, que foram declarados ‘traidores da pátria’, e reafirmou que o país está disposto a proteger pessoas apátridas. “O Brasil está preocupado com relatos de sérias violações de direitos humanos e restrições ao espaço democrático naquele país, particularmente execuções sumárias, detenções arbitrárias e tortura contra dissidentes políticos”, disse Nunes.
Apesar de tradicionalmente o Brasil adotar uma postura de neutralidade e prezar pela paz, os especialistas falam que existe um limite e que é necessário o governo brasileiro ter uma política externa bem definida de como vai se comportar em relação à questão da ditadura, principalmente porque o país faz parte de um grupo pró-democracia. “O Itamaraty tem como linha de atuação evitar comentários sobre a política em outros países. Ele tem uma ideia de autodeterminação e não intervenção, o que, de certa forma, legitima o governo brasileiro de não condenar esses ditadores”, explica Miriam Saraiva, professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Ela volta ao passado para dizer que, quando o Partido dos Trabalhadores teve contato com a Nicarágua lá atrás, Ortega não era um ditador. “Porém, agora o cenário é outro e, por mais que você tente manter uma relação, chega uma hora que precisa dar um basta, principalmente quando um político vai piorando seu comportamento.”
Apesar de entender que o governo brasileiro é novo – está no poder há 70 dias – Eduardo Fayet, consultor e especialista em Relações Institucionais e Governamentais, critica a demora do Brasil em se posicionar. “É preciso decidir como vai ser o comportamento quanto à questão de ditaduras ou países que tenham líderes autoritários. O Estado brasileiro precisa tomar decisões estratégicas, porque não somos mais um país pequeno de segunda classe, somos importantes no mundo, do ponto de vista econômico, populacional, do ponto de vista ambiental e temos que reconhecer nossa importância”, explica o professor; Ele afirma que, ao mesmo tempo em que essa nova situação é boa, também nos traz maiores responsabilidade no sentido de posicionamento de forma adequada. “Não é simples, e talvez a demora tenha sido por isso, mas há necessidade de analisar os aspectos diplomático e econômico e a relação que se tem com o país, pois, se de fato há um posicionamento em grupo em prol do desenvolvimento da democracia no mundo, se a gente vai estar nesse grupo, precisamos ter uma estratégia básica para lidar com países nessas situações”. A professora da ESPM Renata Álvares pontua que “um governo democrático não pode apoiar um governo autoritário. Contudo, não apoiar não significa abrir um conflito maior, sobretudo porque o Brasil, historicamente, até mesmo na época da ditadura, tem um histórico de mediar conflitos na comunidade internacional”.
Marcio Coimbra, coordenador de pós-graduação em relações institucionais e governamentais do Mackenzie, complementa dizendo que a demora do posicionamento brasileiro é preocupante porque, dependendo da escalada da situação, pode levar o Brasil a uma situação incômoda nos fóruns internacionais. “Se o país continuar tendo essa posição, pode causar problemas. Ainda não causou, mas o Lula chegou ao terceiro mandato como fiador de um regime democrático, e depois do 8 de janeiro, a comunidade internacional e imprensa cobram esse compromisso”, afirma. “Como ele pode ser fiador da democracia se silencia sobre os crimes na Nicarágua? Ele vai começar a ficar em uma situação incômoda e a imagem de democrata que construiu pode ruir diante da aproximação com Venezuela, Cuba e o silêncio sobre a Nicarágua. Então, como ele chegou como fiador, precisa defender a democracia e os direitos humanos sem coloração ideológica, para que assim consiga manter sua imagem de democrata na frente internacional”. O especialista alerta que se isso não acontecer, ele pode perder a liderança da esquerda na América Latina para o presidente do Chile, Gabriel Boric, que não se abstém de condenar os regimes por ataque à democracia e aos direitos humanos e se mostra um esquerdista moderno que olha para violação de direitos humanos sem coloração política. “Por enquanto, Lula não passou por nenhum processo de ‘fritura’, mas se o Brasil seguir se abstendo diante de crimes dentro do continente, sua liderança começará a ser questionada dentro da comunidade internacional”, conclui.
É difícil pensar nos próximos acontecimentos da Nicarágua, tendo em vista que Ortega não deve ceder às pressões internacionais e muito menos abrir mão do poder. Contudo, os especialistas concordam que há uma solução simples, porém, com execução complicada: a democracia. “O que precisamos é de maior respeito aos direitos humanos e o caminho que precisa se encontrar é o diplomático. Começar a fazer pressão na Nicarágua por organismos multinacionais como Unesco, Unicef, Acnur, pressão da Igreja Católica… A partir daí enviar missões como forma de monitorar a situação no país. Esse é o primeiro passo”, diz o coordenador Marcio Coimbra. “Precisa sufocar economicamente com sanções e diplomacia. Daí veremos se o Ortega relaxa as rédeas”, acrescenta. “As ditaduras precisam acabar algum dia, contudo, quanto mais ele reprime, mais radical fica. É mais difícil achar uma forma de acabar de forma pacífica, mas acho que o destino da Nicarágua, assim como da Venezuela, acaba quando países começam a viver uma condição econômica muito ruim”, aponta Miriam Saraiva.
Para Ricardo Ghizi, existem duas possibilidades: terminar em algo parecido como a Venezuela, com Ortega se mantendo no poder mesmo com a oposição interna e pressão internacional, ou – o que seria o cenário ideal – que as coisas mudassem nos próximos anos. Porém, para isso é preciso que Ortega saia do cargo. “Tenho impressão que as coisas tendem a piorar até que a pressão internacional surta efeito. Em uma democracia, tem que ter alternância de poder”, diz. Apesar de um pouco maligno de se pensar, o professor Eduardo Fayet fala de uma outra possibilidade para acabar com a ditadura. “Ortega já está em uma idade avançada, então a chance de morrer poderá ser benéfica para a Nicarágua, porque acho pouco provável que ele cederá nessa altura da vida ou situação”, diz, acrescentando que “com certeza os nicaraguenses terão anos de dificuldades graves, mas tendencialmente se abrirão e caminharão para uma processo de transição democrática nos próximos anos, mas serão longos anos, cerca de 20, 30 ou 40”.
Fonte: Jovem Pan News
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