As perspectivas de carne cultivada em laboratório chegar aos pratos americanos aumentaram no meio do ano passado, quando a FDA (Food and Drug Administration, a Anvisa estadunidense) declarou, pela primeira vez, que o frango cultivado, da Upside Foods, é seguro para comer.

“Está quase na hora de comer carne cultivada”, disse Eric Schulze, vice-presidente de assuntos científicos e regulatórios globais da Upside, no Twitter. “Nosso frango Upside está chegando aos consumidores muito em breve.”

Forte crescimento da Upside

Desde sua fundação em 2015, a Upside, com sede em Berkeley, Califórnia, cresceu de startup pouco conhecida para a queridinha da indústria de carne cultivada, avaliada em US$ 1 bilhão e apoiada por investidores, como Bill Gates, Richard Branson, Kimbal Musk e os gigantes da carne Tyson Foods e Cargill. Globalmente, mais de 150 empresas do setor levantaram US$ 2,8 bilhões até o momento.

Embora a Upside e outras sejam capazes de cultivar pequenas quantidades de carne a partir de células, produzir volumes maiores a baixo custo está se mostrando muito mais difícil, de acordo com entrevistas com empregados atuais e antigos da Upside, funcionários do setor, investidores e cientistas externos.

Muitos estão céticos que as empresas de carne cultivada – que dependem de tecnologia cara para fazer commodity de baixo preço – serão capazes de produzir carne acessível o suficiente para fazer diferença significativa em breve no mercado global de carne de mais de US$ 1 trilhão.

Eles esperam que os produtos híbridos, muitas vezes feitos com células animais e outros ingredientes, como proteínas vegetais, tenham caminho mais rápido e menos dispendioso para o mercado.

“Podemos fazê-lo em pequenas escalas com sucesso”, disse Josh Tetrick, diretor-executivo da rival de tecnologia de alimentos Eat Just, de Alameda, Califórnia, que, em março, recebeu o segundo opinião da FDA de que seu frango cultivado é seguro para comer. “O que é incerto é se nós e outras empresas seremos capazes de produzir isso na maior escala e com o menor custo na próxima década.”

Tetrick disse que a unidade Good Meat da Eat Just vende menos de 2,2 mil kg por ano de seu frango híbrido cultivado em Cingapura, único país que permite venda de carne cultivada em laboratório aos consumidores. Em comparação, a produção global de carne deve chegar a 350 milhões de toneladas neste ano.

A Upside diz que a carne cultivada em laboratório tem o potencial de alimentar uma população global em expansão, concomitantemente em que salva os animais do abate e causa impacto ambiental menor no planeta do que a carne tradicional.

Uma Valeti, CEO da empresa, disse que a Upside provou que pode produzir com segurança um produto “delicioso”. A empresa disse que ajudou a criar indústria pioneira e que está progredindo no cultivo de maiores quantidades de carne, ao passo em que reduz seu custo.

O que estamos tentando fazer não é fácil. É como colocar um homem na Lua. Não há roteiro ou projeto.

Uma Valeti, CEO da Upside

A Upside trabalha para desenvolver novos produtos e processos em sua planta piloto em Emeryville, Califórnia, inaugurada em 2021. A empresa disse que planeja servir seu primeiro produto comercial, um filé de frango, em restaurante três estrelas Michelin em San Francisco, assim que obtiver a aprovação do Departamento de Agricultura. A empresa chama seu produto de filé, em vez de peito de frango, porque não veio de um animal vivo.

Exemplo de carne cultivada em laboratório (Imagem: New Africa/Shutterstock)

Como se obtém a carne cultivada?

A carne cultivada é normalmente produzida colocando certas células de aves e gado em tanques de aço inoxidável conhecidos como biorreatores, onde são alimentados com nutrientes e oxigênio antes de serem colhidos e transformados em produtos de carne.

De acordo com ex-funcionários, a Upside tem lutado para produzir grandes quantidades de carne. Eles disseram que a empresa frequentemente se esforçava para produzir o suficiente para análises e degustações de laboratório.

Durante anos, a Upside trabalhou para cultivar cortes inteiros de carne, o que se mostrou difícil em seus biorreatores. Lutaram ainda contra a contaminação em seus laboratórios. Vestígios de DNA de roedores contaminaram uma linhagem de células de frango, segundo ex-funcionários e confirmados por executivos da empresa.

Hoje em dia

Hoje, a empresa está cultivando seu filé principal não em grandes biorreatores em sua planta piloto, mas em garrafas plásticas de dois litros, semelhantes às usadas para cultivar células por décadas por empresas farmacêuticas.

Centenas de garrafas descartáveis, muitas vezes chamadas de “garrafas de rolo”, são necessárias para fazer alguns filés.

“Garrafas rolantes não são escaláveis. Muito pequeno, muito trabalhoso”, disse David Humbird, engenheiro químico independente que escreveu relatório cético em relação à indústria. A Upside disse que o processo funciona bem para a produção em pequena escala de filé de frango.

“É o princípio ‘finja até conseguir’”, disse Samir Qurashi, ex-funcionário da Upside, referindo-se às comunicações públicas da empresa sobre seu progresso. Qurashi deixou a Upside após três meses, quando seu gerente, cofundador da empresa, foi demitido em 2021.

Transparência

A empresa disse que tem sido transparente com o público. Afirmou ainda que divulgou o uso de garrafas plásticas em documentos enviados ao FDA e que usa recipientes de tamanhos variados para produzir sua carne.

A Upside disse ainda, em 2021, que encontrou maneira de produzir um pouco de carne sem usar componentes de origem animal. Mas seus primeiros filés de frango não serão feitos com esse processo, disser a fabricante, observando que pretende eliminar gradualmente o uso de componentes de origem animal.

A planta piloto da Upside ainda não está operando com a capacidade anual de 22,6 mil kg que a empresa anunciou quando foi inaugurada em 2021, segundo executivos da empresa, muito menos sua meta futura de 181,4 mil kg. A produção pode acelerar assim que a Upside receber autorização do USDA, disseram executivos da empresa.

Expectativas

Muitos dos investidores da Upside disseram estar confortáveis com suas apostas de longo prazo na empresa e seu progresso até agora.

“Nunca há cronograma claro que seja exato ou bola de cristal sobre como algo novo para o mundo progride”, disse Priti Youssef Choksi, sócio da Norwest Venture Partners.

Os defensores da indústria disseram estar confiantes de que o progresso científico constante ajudará a reduzir custos de produção da carne cultivada, enquanto a mudança climática e o crescimento da população global intensificarão a necessidade disso.

“Se as proteínas alternativas não forem bem-sucedidas, as metas do acordo climático de Paris provavelmente serão impossíveis de cumprir”, disse Bruce Friedrich, presidente do Good Food Institute, organização sem fins lucrativos que defende proteínas alternativas.

Bovinos de corte e leite, juntamente com outros animais de fazenda, são importantes fontes de metano, gás de efeito estufa.

Bovinos e outros animais de fazenda produzem altos níveis de metano (Imagem: Studio Romantic/Shutterstock)

O progresso da Upside foi prejudicado por busca inicial para cultivar em seus biorreatores grandes pedaços de tecido, visando produzir cortes inteiros de carne, segundo funcionários e ex-funcionários. A empresa enfrentava problemas com o processo caro e demorado, enquanto outras progrediam usando técnicas mais simples.

Mais recentemente, a Upside expandiu seu próprio foco em tais técnicas para fazer pasta de células e itens semelhantes à carne moída, que são mais baratos e fáceis de produzir.

Expansão da gama de produtos

Na semana passada, a empresa disse que pretende – pendente de revisão regulatória – oferecer novos itens, incluindo salsichas de frango, sanduíches e bolinhos, que serão mistura de células animais e outros ingredientes, como vegetais e proteínas vegetais.

“Acontece que o tecido, ou criar essa textura de corte inteiro, foi realmente desafiador”, disse Amy Chen, diretora de operações da Upside, que acrescentou que a empresa há muito procura criar variedade de produtos.

A Upside também lutou com problemas comuns a outros fabricantes de carne cultivada, incluindo batalha contra bactérias, segundo ex-empregados. O cultivo de carne requer esterilização meticulosa, porque pequenas quantidades de bactérias podem ultrapassar rapidamente um biorreator, arruinando um lote inteiro.

Companhia vem evoluindo em seus testes (Imagem: Reprodução/YouTube/meetfilm)

Instalações

Durante anos, a Upside operou em um prédio com sistema de filtragem de ar que contribuía para a contaminação e autoclave não confiável, uma máquina que esteriliza equipamentos, disseram ex-funcionários. A contaminação também foi problema quando a Upside abriu sua nova planta piloto.

A fabricante disse que enfrentou os contratempos normais de iniciar a produção na nova instalação e está altamente confiante na segurança de seus produtos.

A empresa disse que a contaminação pode retardar a produção, mas não afeta os produtos finais cultivados, ao contrário da carne convencional. Disse ainda que as autoclaves às vezes exigem manutenção, e que a carne cultivada para os consumidores não será produzida no prédio antigo.

A Upside disse que implementou medidas adicionais para se proteger contra o risco de contaminação.

Em incidente de 2019, uma análise de linha de frango cultivado revelou que havia sido contaminada com pequena quantidade de DNA de roedores.

Chen disse que o DNA se originou de técnica comum de pesquisa médica que usava células de roedores tratadas para ajudar no crescimento das células da carne no início do processo de cultivo. A empresa imediatamente parou de usar essa técnica, disse ela.

A Upside diz que assume que pequeno número de pessoas consumiu amostras da carne cultivada a partir dessa linha antes que a contaminação fosse descoberta usando teste altamente sensível.

A empresa disse que não realizou degustações em público, mas se recusou a especificar quem poderia ter comido. Valeti afirmou que a linha celular estava sendo usada apenas para pesquisa e desenvolvimento e não representava nenhuma preocupação de segurança.

Alguns representantes do setor acham que as empresas podem superar os problemas de contaminação, mas ainda existem muitos obstáculos, incluindo aqueles ligados ao cultivo de células delicadas e ao alto custo dos suprimentos.

Recentemente, os investimentos no setor de proteínas alternativas diminuíram em meio a desaceleração no financiamento de empreendimentos.

A Cargill, um dos primeiros investidores da Upside, continua confiante de que a carne cultivada um dia estará disponível para muitos consumidores, embora a veja como parte menor das ofertas de proteína por algum tempo, disse Florian Schattenmann, diretor de tecnologia da Cargill.

Valeti disse, em 2016, que a Upside pretendia lançar seus produtos em restaurantes e mercearias sofisticadas até 2019 e na Costco até 2021. Em duas décadas, disse Valeti à época, a maioria da carne vendida nas lojas seria cultivada.

A fabricante disse que a pandemia de Covid-19 atrasou seu cronograma de lançamento de produtos no mercado, fechando os laboratórios da empresa e dificultando a obtenção de alguns suprimentos.

“Não houve nada perto de uma moleza”, disse Valeti. “Mas entramos nisso sabendo que seria realmente desafiador.”

Com informações de The Wall Street Journal