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País alterna períodos de crescimento e recessão e vive maior alta da inflação em três décadas; dados da Universidade Católica indicam um percentual de quase 50% de pobreza da população
A inflação de 108% em 12 meses na Argentina enfatiza um problema que há anos se faz presente no país e que parece não ter uma solução à vista. Nesta semana, como forma de conter o processo inflacionário, o governo elevou a taxa de juros de 91% para 97%. Essa foi a primeira de uma série de medidas que o país pretende implantar para conter o derretimento da economia. Porém, situações como essas não são novidade. Especialistas explicam que, nos últimos 50 anos, o país passou por cinco situações de hiperinflação e existem problemas estruturais na economia argentina – ela é dependente do agronegócio e está com sua principal receita afetada devido à seca histórica que atinge o país. O professor Márcio Coimbra, coordenador de pós-graduação em relações institucionais e governamentais do Mackenzie, explica que o que a Argentina tem feito é apenas trabalhar para administrar a crise. “O país está vivendo uma administração de crise, ela não está tendo nenhuma implementação de política com alguma orientação para algum lado de reforma. Não há um caminho objetivo para onde ela está seguindo economicamente, o que faz com que os ‘hermanos’ tenham um futuro muito difícil pela frente, porque o país tem um passado muito virtuoso, mas não tem futuro auspicioso”, avalia. Por se tratar de um problema recorrente, para entender o cenário dos dias atuais é necessário voltar no tempo e relembrar o histórico de crises econômicas vividas durante todos esses anos.
Professora de Relações Internacionais da FESPSP e pesquisadora do Observatório de Regionalismo (ODR), Flavia Loss explica que a Argentina alterna períodos de crescimento e de graves crises econômicas desde a década de 1970 e enfrenta graves problemas inflacionários desde o final dos anos 80. A pior recessão do país ocorreu entre 1999 e 2002, momento em que muitas moedas latino-americanas se desvalorizaram. “Assim, a Argentina iniciou o século XXI enfrentando delicada situação econômica e política, especialmente sob o governo de Fernando de la Rúa (1999-2001), presidente conhecido por ter aplicado o chamado “corralito”, ou seja, a limitação de saques bancários. O presidente solicitou também um empréstimo ao Fundo Monetário Internacional em dezembro de 2001, que depois resultaria na impossibilidade do pagamento da dívida e agravaria a crise. A sequência de medidas desastrosas levou a população a protestar, e Fernando de la Rúa foi forçado a renunciar em 21 de dezembro daquele ano. Para termos a dimensão da crise política que também se instalou no país, em apenas doze dias (21 de dezembro de 2001 até 01 de janeiro de 2002) a Argentina teve cinco presidentes”, esclarece.
Vinicius Vieira, professor de relações internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), aponta que a Argentina chegou a ser um dos países mais ricos do mundo, durante a transição do século XIX para o século XX, graças ao “boom” das commodities. Contudo, perdeu a posição por conta de uma série de decisões equivocadas, como o excesso de intervencionismo estatal e tentativas forçadas de redistribuição de recursos. “Também houve a liberalização sem qualquer planejamento, como, por exemplo, durante a ditadura militar, várias empresas públicas foram vendidas sem que isso se revertesse em benefícios para a economia a longo prazo”, esclarece. Ele também cita o processo de dolarização da economia argentina como um entrave para o aumento da competitividade do país durante o processo de globalização iniciado nos anos 90.
Flavia Loss complementa que, entre 2003 e 2015, os governos de Néstor Kirchner e Cristina Kirchner conseguiram controlar a situação por algum tempo e foram beneficiados pelo aumento das exportações de commodities. Contudo, os problemas estruturais da economia como o câmbio, descontrole fiscal e aumento do déficit orçamentário continuaram. “Desde 2018, a conjuntura política, econômica e social sofreu um novo revés: a crise cambial levou o país a uma nova recessão e o então presidente Maurício Macri solicitou um novo empréstimo ao FMI [Fundo Monetário Internacional]. Importante notar que Macri foi o primeiro presidente que não era peronista na história recente da Argentina e define-se como liberal. O seu governo foi marcado pela desconfiança dos investidores, desvalorização do peso e consequente queda nas reservas internacionais, cenário que trouxe a reboque o aumento da pobreza e do desemprego. Logo, Macri não conseguiu reeleger-se e perdeu para o peronista Alberto Fernández, cujo mandato enfrentou a pandemia e uma recessão de quase 10%, além do aumento da desigualdade social e do desemprego”, relembra.
A partir de 2021, a Argentina conseguiu retomar parte do crescimento. Contudo, a situação política se manteve conturbada com o presidente atravessando uma grave crise de legitimidade causada pelas diferenças com a sua vice, Cristina Kirchner, e com o ministro da Economia, Sérgio Massa. “Além disso, houve piora no quadro econômico: a Argentina registrou inflação anual de 94,8% em 2022. A inflação não mostra sinais de arrefecimento e, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina (INDEC), registrou taxa de 108,8% em abril de 2023. É a maior alta em trinta anos. Soma-se a isso o fato de que o país está se desfazendo rapidamente de reservas internacionais para sustentar a taxa de câmbio. Essa medida pode provocar aumento da inflação, gerando um ciclo ainda mais negativo para a economia. Um fator adicional que pode ser acrescentado é a intensa seca que o país está atravessando e já provocou problemas na safra e queda no PIB”, pontua Flavia.
Vitelio Brustolin, professor de Relações Internacionais da UFF e pesquisador de Harvard, relembra que entre 2002 e 2022 a Argentina também aumentou o gasto público em mais de 14,7% em relação ao próprio PIB e boa parte desse gasto é financiado por emissão monetária. Esse movimento gera inflação, que vem acelerando, e as “projeções indicam que essa taxa continuará aumentando neste ano, repetindo o impulso de março e abril, quando atingiu 7,7% e 8,4% respectivamente ao mês”. Ao mesmo tempo em que esse problema cresce, “as taxas de juros não param de aumentar e acabam de chegar ao patamar 97% ao ano, o maior em 20 anos”. Somado a isso, o descontrole do câmbio, que vem ocorrendo de forma severa nos últimos anos – há 48 cotações diferentes para o dólar que circula no país – a Argentina sofre com escassez de dólares e as reservas líquidas do Banco Central estão zeradas, chegando agora ao déficit de US$ 1 bilhão. Brustolin pontua que “com esse nível de inflação e dificuldade de acesso a moedas fortes, os argentinos empobrecem a cada dia. Segundo o INDEC, atualmente 39,2% dos argentinos estão em nível de pobreza”. Em números concretos, a população total do país passa de 45 milhões, dos quais cerca de 18 milhões são considerados pobres pelo governo atualmente, entretanto, há outros indicadores que provavelmente representam melhor a realidade. Dados da Universidade Católica indicam um percentual de quase 50% de pobreza.
Todo este contexto fez com que o governo liderado por Alberto Fernández decidisse elevar a taxa de juros e lançar um pacote de medidas. De acordo com publicações feitas pelos jornais “Clarín” e “La Nación”, a taxa básica de juros subirá de 91% para 97% ao ano. Além disso, é esperada uma maior intervenção do Banco Central no mercado de câmbio para evitar a desvalorização gradual do peso. Entre as medidas também estão o aprofundamento nas discussões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), além de negociações com a China para uso do yuan (a moeda chinesa) nas transações comerciais. Há também conversas marcadas com os demais países do chamado Brics, grupo de países emergentes, para viabilizar a troca de moedas. Para o pesquisador de Harvard, essas medidas são superficiais e insuficientes. “A medida desta semana foi direcionada a tentar atender ao Fundo Monetário Internacional e acelerar acordos com o órgão, com a China e com o Brasil. É por isso que Massa irá a Pequim em 29 de maio para tentar conseguir mais recursos ao país”, diz Brustolin.
O mercado e a sociedade também veem com ceticismo as medidas adotadas. Sócio da consultoria BRCG e pesquisador associado do FGV-IBRE, Livio Ribeiro avalia que o governo argentino elevou os juros a patamares estratosféricos em uma tentativa de defender a moeda, que sofre sistematicamente ataques em um momento em que a oferta de dólar no país diminuiu muito. “Isso porque a Argentina basicamente utilizou todas as reservas internacionais que tinha e sofreu um choque muito grande no ano passado, com uma forte seca no campo. O cidadão médio argentino não tem confiança na sua moeda, ele demanda dólares, as empresas também, e os contratos cada vez mais são firmados na moeda norte-americana. Mas não há disponibilidade suficiente de dólar na economia argentina para fazer frente a esta demanda. Isso faz com que o preço entre o dólar oficial e paralelo exploda, colocando pressão no mercado cambial. Uma forma de se defender disso é aumentar o diferencial de juros”, explica.
Livio complementa que, embora a taxa de juros tenha chegado a 97% em uma conta simples, ela continua negativa em termos reais porque a inflação é de 108%. “É um cenário completamente desorganizado em termos econômicos e os efeitos dessas medidas são paliativos. O grande problema é resolver o descasamento que existe entre a capacidade de demanda e a capacidade de oferta. Os juros reais, que é o que realmente importa, continuam negativos, então não é uma restrição tão grande quanto as pessoas pensariam a princípio. Muita coisa tem que ser feita para melhorar a situação econômica do país, mas é um processo estrutural que exige consenso político e social, além de medidas muito duras no curto prazo”, sinaliza. O professor Márcio Coimbra, coordenador de pós-graduação em relações institucionais e governamentais do Mackenzie, alerta que a Argentina tem todos os requisitos para viver outra vez uma hiperinflação. “O país está fraco. Quanto maior o juros, mais fraco fica, porque precisam remunerar mais. Com a inflação galopante que estamos tendo com controle da economia, preço e restrição ao valor do dólar, a situação da Argentina ainda não está desesperadora, mas preenche todos os requisitos para ter uma inflação galopante. O próximo presidente vai herdar um país deteriorado economicamente”. As eleições presidenciais na Argentina estão marcadas para 22 de outubro deste ano.
Fonte: Jovem Pan News
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