Sexta-feira, Novembro 22, 2024
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De colonizador a colonizado: França sofre os efeitos de não ter se preparado para incorporar seus migrantes

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A morte de Nahel, um jovem descendente de argelinos de 17 anos baleado pela polícia na França, no dia 27 de junho, desencadeou uma onda de manifestações pelo país que deixou cerca de 3,5 mil pessoas detidas, mais de 2,5 mil edifícios incendiados ou vandalizados e 12 mil carros queimados. Casos como esse não são novidade na França. Há 18 anos, um episódio semelhante também gerou revolta popular. Em 2005, dois adolescentes foram mortos pela polícia. Naquele ano, o balanço em três semanas de protestos foi de 10 mil veículos destruídos, mais de 200 edifícios públicos incendiados e 5,2 mil pessoas detidas. Apesar de algumas mudanças terem sido implantadas no país durante esse tempo, ainda fica claro como a questão migratória é um problema recorrente e como há falta de incorporação dessas pessoas à sociedade. “O que entendemos e ao que assistimos na França é uma situação complexa. Nos últimos 30 anos, houve mais de 160 situações similares, isso porque o país sempre teve uma visão revolucionária de tentar mudar rapidamente as coisas”, explica Igor Lucena, economista e doutor em relações internacionais pela Universidade de Lisboa. Para entender o que vemos hoje, é preciso voltar no passado.

“A França, por ter tido muitas colônias, sofre hoje com o fato das pessoas desses antigos territórios estarem voltando para o país pela questão histórica, cultural e também linguística, para, na prática, encontrarem uma possibilidade de vida melhor”, explica Lucena. Muitas dessas migrações são ilegais, o que faz com que descendentes de argelinos, tunisianos, marroquinos, senegaleses e de outras colônias francesas acabem não tendo capacidade educacional — ou até mesmo de trabalho — para encontrar bons empregos, o que, muitas vezes, leva à criação do subúrbio. Pelo fato de estarem ilegais no país, isso os exclui de atividades e programas sociais, tornando uma situação muito degradante para a parte dessa população imigrante. Não é só a França que recebe migrantes. Pelo contrário, outras regiões da Europa também são vistas como porta de entrada para uma vida melhor. Contudo, casos com o de Nahel são menos comuns.

David Morales professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC, destaca que os franceses estão pagando alto custo do efeito do processo devastador da colonização. “Eles não estavam preparados para esse novo capítulo pós-colonização. A Europa não estava preparada. A onda migratória se tornou um problema no momento em que já não se consegue mais sustentar, não consegue incorporar”, fala o professor. Entre os anos 70 e os 90, a França começou implementar políticas públicas, porém o assassinato de Nahel abre os olhos do país europeu: elas foram insuficientes; houve ausência da compreensão do Estado para satisfazer as necessidades dos migrantes; e a sociedade está mudando. “A França sempre foi ótima para criar leis. A história francesa, a contribuição da França para a humanidade, através do pensamento jurídico, é louvável, eles são muito bons. Só que agora estão em uma fase em que há algo por trás de tudo isso, como se fosse um vulcão fazendo erupções sucessivas”, compara Morales, lembrando das últimas manifestações, como a dos coletes amarelos (contra a carga tributária do país e as reformas promovidas pelo governo de Emmanuel Macron) e, recentemente, os atos contra a reforma da previdência.

Vinícius Vieira, professor de relações internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), também aponta a ausência de incorporação das populações não europeias como a razão para a questão migratória. “Isso gera ali toda uma série de dinâmicas sociais, que faz com que, principalmente os mais jovens, cresçam sem perspectivas de melhorar a sua condição de vida”, afirma. “É um caldeirão, uma herança do colonialismo, que acaba fazendo com que isso resulte em manifestações como essas”, complementa o professor. Na esteira dos protestos, surgiram pessoas que se aproveitam da situação para cometer crimes. Diante dos altos números de violência, a avó de Nahel fez um apelo para que as pessoas parem de vandalizar. “Não quebrem vitrines, não destruam escolas, ônibus… São mães que usam o ônibus”, afirmou Nadia ao canal BFMTV. Lucena fala que atos violentes descredibilizam o movimento, “porque não se resolve violência com violência”. Ele lembra que grandes movimentos sociais que mudaram a sociedade foram feitos de forma pacífica. Apesar de criminosos aproveitarem esse momento para “badernas”, Vieira ressalta que isso não elimina o fato de que a sociedade francesa é racista e discrimina as pessoas com base na sua origem étnica, racial, religiosa.

Diversos países europeus recebem migrantes e também não os defendem de racismo e xenofobia. Contudo, na França os casos têm um destaque maior. Morales explica que a política de imigração e de acolhimento é desenhada em Bruxelas e vai para o modelo marco de lei para todos os países na União Europeia. Porém, dependendo do país, essa medida pode ser instrumentalizada, o que permite que os governos ajustem as normas de acordo as necessidades internas e o espectro político. Isso fica evidente, por exemplo, no recente ataque racista contra o jogador Vinícius Júnior, na Espanha. Por mais que tenha ganhado repercussão e gerado um atrito diplomático entre o Brasil e o país europeu, não desencadeou em ondas de manifestações como se viu na França. “A população estava manifestando seu próprio racismo estrutural. Então, você tem na Europa os paradoxos da integração europeia. Como é possível que um processo de integração que se coloca como o bem mais sucedido da história da humanidade, com tantos países, com tantas línguas diferentes, mas, ao mesmo tempo, com tantos mesmos problemas estruturais como racismo, como xenofobia?”, questiona. “Por isso que eu vejo, no caso da França, vai corresponder à instrumentalização das decisões políticas tomadas em Bruxelas e, ao mesmo tempo, aos interesses que jogam quando devem ser aplicadas as normas negociadas”, acrescenta Morales.

Vieira cita o Reino Unido como grande “exemplo”. Por mais que não seja um caso perfeito, hoje o primeiro-ministro do país, Rishi Sunak, é hindu, descendente de imigrantes indianos, e mesmo assim assumiu uma importante posição sem que tenha gerado grandes traumas na sociedade britânica. O prefeito de Londres, Sadiq Khan, é descendente de paquistaneses e muçulmano. No entanto, mesmo que o Reino Unido absorva bem ambos os lados do espectro político — e que são se veja no país o mesmo que ocorre França —, não elimina o fato de que haja discriminação étnicas e raciais. A diferença é que os britânicos permitem que as pessoas façam parte da sociedade e contem com uma rede de solidariedade. Na França, isso não existe. Pessoas nascidas lá, mas filhas de migrantes, não são vistas como franceses.

Fonte: Jovem Pan News

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