Neste dia 27 de agosto é comemorado o Dia do Psicólogo. Esse profissional sempre tão importante vem se tornando cada vez mais necessário na vida das pessoas. Afinal, as doenças da mente (e da alma) têm se mostrado, verdadeiramente, o mal do século 21.

Paralelamente, vemos a evolução digital invadir e dominar as nossas vidas de uma forma quase “violenta” – no sentido potente e descomedido da palavra. Para o bem e para o mal, a tecnologia ocupou um espaço próprio na vida do ser humano, cuja tendência é aumentar a cada dia (hora, minuto, segundo…).

E qual é a relação entre essa profissão, que é celebrada nesta data, e os avanços tecnológicos que estamos vivenciando na era digital? A resposta não é simples. Talvez, requeira longas sessões de terapia.

Psicologia e tecnologia sempre andaram de mãos dadas

Vamos começar com um exemplo que parece simples. Como todos se lembram, acabamos de passar por um momento totalmente atípico na história: a pandemia de Covid-19, que exigiu medidas combate rigorosas, como o isolamento social.

Assim como as aulas, as audiências jurídicas e reuniões, de forma geral, as sessões de terapia precisaram recorrer ao atendimento remoto – via plataformas digitais, como o Zoom, o Google Meet ou o Whereby, por exemplo.

Por causa do isolamento social determinado em razão da pandemia de Covid-19, uma forma alternativa de atendimento psicológico surgiu, a terapia online – e muitos continuam fazendo uso dessa opção. Crédito: AnnaStills – Shutterstock

No entanto, engana-se quem pensa que o alinhamento entre a psicologia e a tecnologia começou aí. Em termos de atendimento clínico, não restam dúvidas do quanto os recursos tecnológicos, especialmente os de telecomunicação e internet, têm sido essenciais e ganhado mais atenção.

Mas, muito antes de isso tudo acontecer, as áreas – que podem se dizer codependentes – já vinham estabelecendo vínculos importantes.

Segundo o professor associado na disciplina de Psicologia Sensorial e da Percepção, do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Marcelo Fernandes Costa, neurocientista com pós-doutorado em Neurociências e Comportamento, o uso da tecnologia na psicologia (e vice-versa) é algo historicamente notável em ambos os campos.

Marcelo Fernandes Costa, neurocientista com pós-doutorado em Neurociências e Comportamento e professor associado na disciplina de Psicologia Sensorial e da Percepção, do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Crédito: Arquivo – Instituto de Psicologia USP

Costa, cujas linhas de pesquisa se concentram em psicofisiologia sensorial, eletrofisiologia visual clínica, testes sensoriais e perceptuais, entre outras, diz que diversas abordagens da psicologia utilizam ferramentas tecnológicas em suas atuações. A neuropsicologia, por exemplo, é uma delas. 

“A neuropsicologia é uma área da psicologia que estuda o impacto das funções cerebrais e seus mecanismos ligados às atividades psicológicas. É muito atuante, por exemplo, no tratamento de pacientes com lesão cerebral, restabelecendo as funções psicológicas adequadas, desde as mais simples, como atenção e memória, até as mais complexas, como raciocínio e percepções visuais e auditivas que possam ter sido perdidas”, declarou Costa em entrevista ao Olhar Digital. “Então, ela analisa o que é que fisiologicamente pode estar acontecendo no cérebro para que as subjetividades não estejam funcionando bem. E quem trata disso são neurocientistas, de uma maneira geral, e os psicólogos comportamentais, os psicofisiólogos, os psicólogos cognitivistas, os psicólogos da educação matemática, entre outros”. 

De acordo com Costa, estes últimos, são como uma mistura entre os psicólogos da fisiologia, a cognição e a parte computacional. “Suas abordagens têm a ver com as redes neurais, o aprendizado por máquina, a Inteligência Artificial, que, resumidamente, é tentar fazer com que a máquina tome decisões e faça escolhas de maneira muito semelhante ao cérebro humano”. 

Para exemplificar, de maneira bem simples, Costa cita os atendimentos robotizados das empresas prestadoras de serviço. “Hoje, se você precisa falar com o seu banco, com a operadora de TV a cabo, você envia uma mensagem ou fala determinada expressão na ligação telefônica e o atendimento informatizado já lhe dá o retorno que você precisa. Por trás disso existe uma inteligência artificial muito bem programada, resultado de acúmulo de décadas de conhecimento da psicologia em parceria com a tecnologia da informação. Isso não é novo, muito pelo contrário”.

Biofeedback: ferramenta terapêutica em constante aprimoramento junto à evolução digital

Todos os estímulos e reações do organismo são controlados pelo cérebro, por meio de um processo natural e automático. O biofeedback é um método que calcula essas respostas do corpo em determinadas situações, funcionando como uma espécie de scanner dessas reações automáticas.

terapia psicológica por biofeedback
Tratamentos de biofeedback são usados, desenvolvidos e aprimorados há mais de 50 anos, uma prova da relação longínqua entre a psicologia e a tecnologia. Crédito: Microgen – Shutterstock

De acordo com o Centro de Estudos em Psicologia (CEMP), o termo biofeedback foi criado em 1969 e se refere a qualquer técnica que se utilize de instrumentos para prover um indivíduo com imediata e contínua informação a respeito da atividade de suas funções fisiológicas. O termo “treinamento em biofeedback” entrou em uso quando o método demonstrou ser uma ferramenta útil no ensino e aprendizado de processos de autorregulação que envolve treinamento.

“Existem os modelos de biofeedback, em que a pessoa vai sendo monitorada enquanto está trabalhando, por exemplo, então quando ela tende a sair do seu estado ótimo de desempenho funcional (ou porque ficou nervosa ou porque está cansada) tem uma sinalização imediata para ela, e aí ela para e tenta voltar de novo ao seu ponto de equilíbrio, dá uma descansada, para daí voltar a fazer as suas tarefas”, explica Costa.

Métodos computadorizados e ferramentas digitais no tratamento de fobias

Costa também destaca que outro uso importante da tecnologia em favor da psicologia são os diversos instrumentos que podem ser utilizados nos tratamentos de fobias, por exemplo. 

Entre esses instrumentos, estão incluídos softwares e outros mecanismos, como simuladores e óculos de realidade virtual.

“Alguns métodos computadorizados permitem que você vá, aos poucos, aproximando uma pessoa que tem fobia de aranha, por exemplo, aos estímulos que geram essa fobia nela. Outro exemplo clássico são pessoas com fobia de avião, e que você pode, então, usando a tecnologia, expô-la, de uma maneira segura, àquele estímulo aversivo ou que gera desconforto para ela, e com isso você vai, junto com ela, tentando modular suas reações afetivas e comportamentais”. 

óculos realidade virtual simulador
Dispositivos tecnológicos, como simuladores da realidade, podem ser utilizados em tratamentos terapêuticos de fobias. Crédito: franz12 – Shutterstock

Ele salienta que, mais recentemente, tem aumentado o uso de equipamentos tecnológicos para várias áreas, principalmente aquelas mais ligadas ao ensino. “Videogames são desenvolvidos para tentar melhorar, por exemplo, o aprendizado de matemática, o aprendizado de linguagem. Também nesse aspecto, já tem algum tempo que a psicologia vem utilizando dos recursos tecnológicos para essas interações, para esses tipos de tratamento”.

Redes sociais: o veneno que contém o antídoto

Com o avanço dos meios de comunicação, em especial a Internet, surgiram novas formas de se relacionar. As redes sociais podem ser consideradas um laboratório perfeito para experimentos e estudos psicossociais. Nunca o comportamento humano esteve em uma vitrine tão cristalina para ser observado.

Nesse aspecto, está o lado positivo das mídias sociais em relação à psicologia. A facilidade e naturalidade com que as pessoas se expõem nesses meios oferecem a atuação de algoritmos especializados na detecção de sinais que possam indicar traços psicóticos, depressão e, principalmente, tendências suicidas.

Não ainda com a precisão desejada, mas próximo disso. “Na verdade, esse tipo de algoritmo já é consequência da longa parceria da psicologia com a área computacional. Uma área grande da psicologia cognitiva, que está ligada à inteligência, raciocínio, tomada de decisões, tem a ver com Inteligência Artificial”, afirma Costa.

“Grandes centros que trabalham com inteligência de máquinas têm psicólogos cognitivos trabalhando em conjunto. Esses algoritmos computacionais foram ficando de fato cada vez mais sensíveis, mais próximos a como o ser humano pensa, a como nosso cérebro funciona. E eles conseguem analisar as diferenças nos perfis. Se eu sempre fui uma pessoa que postava coisas positivas e começo agora a postar coisas negativas, se eu começo a usar diferentes palavras que têm relações com aspectos afetivos, emocionais, a psicologia já consegue fazer um mapeamento e perceber esse tipo de diferença”, explica. 

Algoritmos específicos são capazes de detectar traços de psicose, depressão e até pensamentos suicidas por meio do comportamento nas redes sociais. Crédito: Elena_Goncharova – Shutterstock

Segundo o fisiopsicólogo, todavia, isso esbarra na questão ética. “Agora, por trás de tudo isso tem sempre o problema ético, de monitorar alguém o tempo todo, e qual é o limite de o profissional poder, com base em informações dessas fontes, acionar o contato da pessoa, chamar ajuda, enfim. Então, existem questões relacionadas a isso que ainda não estão bem definidas e precisamos discutir. Esse tipo de ‘invasão pessoal’ pode ser algo muito complicado”.

Além de servir como mecanismo de medição de perfis que pode ser um aliado da psicologia para diagnosticar e tratar esses problemas, as redes sociais, por outro lado, podem também desencadeá-los. O “mundo perfeito” exposto pelos influenciadores digitais ou mesmo usuários comuns de plataformas como o Instagram, por exemplo, pode gerar gatilhos emocionais em determinadas pessoas, que se questionam “por que eu não tenho esse corpo? por que fulano fez essa viagem e eu não posso? por que o casamento dessa pessoa é tão perfeito e o meu não é?”, entre outras inquietações.

Entre os principais vilões, nesse sentido, estão os filtros de vídeo e fotografias, que vendem uma imagem distorcida, diferente do que a pessoa realmente é. E, mais uma vez, a psicologia está diretamente relacionada a isso, como explica Marcelo Costa.

“Um dos aspectos mais importantes na psicologia cognitiva é o chamado aprendizado por consequenciação: se a pessoa tem uma atitude ou um determinado comportamento, e tem uma resposta positiva a isso, ela tende a repetir, da mesma forma que, se a resposta for muito negativa, a tendência é de se inibir. Então, uma pessoa que posta uma foto usando um filtro, e é elogiada por isso, está mais propensa a repetir o ato, porque ela recebe essa compensação positiva”. 

E esses retornos vêm de forma praticamente imediata. “Esses retornos positivos funcionam como um reforçador comportamental. E esse reforçador está ligado a um circuito neurológico de estimulação e de prazer, mediado por um neurotransmissor chamado dopamina”, explica Costa. “Os efeitos são muito parecidos nos usuários de drogas, como a cocaína, por exemplo, que tem uma reação semelhante a isso, de saciedade, de prazer imediato. O imediatismo é um ponto chave, e nesse ponto o uso das redes sociais e as tecnologias atuais deve ser muito mais cuidadoso, porque esse retorno imediato promove o estabelecimento inconsciente desse tipo de aprendizado”. 

Segundo Costa, a exposição constante a isso pode começar a modificar as estruturas de relacionamento com as mídias sociais. “As pessoas começam a entrar em um círculo vicioso, conforme têm ou não têm o retorno desejado em suas postagens ou comportamentos na internet. E é um vício exatamente como se fosse uma droga”.

O retorno negativo ou até a falta de retorno também tem seus efeitos, ainda mais graves. “Por outro lado, a pessoa sendo muito ironizada ou criticada, pode se isolar socialmente ou digitalmente, chegando a tomar atitudes drásticas, que ela não precisaria, e tudo isso tem uma relação grande com esse retorno imediato. Seja com o reforço ou a punição, a velocidade com que isso acontece é que é um ponto crítico para o estabelecimento desses comportamentos”, explica. 

O imediatismo da telecomunicação moderna e o desenvolvimento de transtornos de ansiedade

Confirmação de recebimento. Confirmação de leitura. Um tique, foi. Dois tiques, chegou. Ficou azulzinho, leu. O que, para algumas pessoas, é algo sem grande importância (tanto que muitos nem fazem questão dessas ferramentas), para outras é um instrumento de tortura quase semelhante àqueles da Era Medieval.

Antigamente, os telefones ficavam presos por um fio à parede. Então, se você ligava para a casa de alguém e essa pessoa não atendia, não lhe restavam outras alternativas senão esperar e tentar novamente. Depois, com o acesso quase absoluto aos telefones celulares (é muito difícil encontrar alguém que não tenha), entrar em contato com outra pessoa tornou-se muito mais fácil (e, lá vem a palavrinha de novo: imediato).

confirmação de leitura WhatsApp
As confirmações de leitura nos aplicativos de mensagem podem despertar estímulos ansiogênicos. Imagem: Flávia Correia

Com os smartphones, chegaram os aplicativos de mensagens instantâneas, e aí a comunicação tornou-se mais rápida ainda. No entanto, o que era para facilitar a vida das pessoas, acabou virando quase um tormento.

“Antes, quando mandávamos uma carta para alguém, até recebermos a resposta, não tínhamos a mínima ideia se a pessoa havia lido ou sequer recebido. Na espera pela resposta, não existiam informações como as que temos hoje, que geram estímulos diretamente. Havia todo um processo entre o envio, o recebimento e o retorno, que estava fora de nosso controle. E hoje, nós temos”, exemplifica Costa. 

“Então, a forma de lidar com isso, depende muito, principalmente, da expectativa de cada um em relação àquela comunicação específica. As confirmações de envio e leitura, seja nos emails ou, em especial, nos aplicativos de mensagem, são ferramentas que podem desencadear sensações nas pessoas e que, muitas vezes, nem correspondem à realidade. Eu posso considerar uma falta de cuidado, uma falta de carinho, quando, na verdade, a pessoa simplesmente não respondeu porque ela não podia naquele momento, ou até mesmo porque ela não quis, e isso não pode ser um problema, mas, muitas vezes é”. 

Costa explica que as pessoas passam a enxergar as outras de forma diferente. “Você começa a questionar o sentimento dessa pessoa em relação a você ou ao que você escreveu. Isso, com certeza, essa ânsia pelo retorno imediato que essas novas tecnologias trouxeram, desperta estímulos ansiogênicos, que podem levar uma pessoa, que já tem propensão, a desenvolver quadros de transtorno de ansiedade, depressão e outros. Existem alguns estudos que mostram isso. O grande problema do ansioso é a sensação de falta de controle sobre os fatos”.

Construção de uma persona virtual com base nos comportamentos e atitudes na Internet 

Por fim, um aspecto muito importante, que não pode ser deixado de lado é o quanto a psicologia também é usada pela tecnologia como ferramenta de monitoramento dos usuários.

Segundo Costa, isso fica muito claro, por exemplo, nos sistemas de buscas do Google, cujos algoritmos já sabem o perfil do usuário e fazem suas sugestões de modo a influenciar as escolhas da pessoa, como se fosse uma memória de curto prazo. 

“Por trás disso tem um mecanismo de Inteligência Artificial que conhece muito bem o usuário, seja pelas fotos armazenadas no Google Fotos, seja pelos comentários feitos em artigos e notícias, seja pelas suas postagens no Facebook e outras redes sociais que ele entra. Tudo isso atua em conjunto, coletando informações de quem o usuário é para construir esse “cérebro artificial” da sua persona virtual, mapeando de forma semelhante com a que o seu cérebro faz”, explica o fisiopsicólogo. 

Então, podemos esperar por um futuro em que as máquinas dominarão por completo os tratamentos terapêuticos e a administração da psique humana? Na opinião de Costa, não é por aí. “Acredito que nos próximos 50 anos, veremos um aumento significativo no uso dessas ferramentas tecnológicas, mas sem dispensar o tratamento pessoal e humanizado”.

Conteúdo revisado e adaptado de matéria publicada originalmente em agosto de 2021.