Sexta-feira, Novembro 15, 2024
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Guerra e futebol na Ucrânia – Tavriya e Karpaty: o primeiro campeão e a gota de esperança

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Shakhtar Donetsk e Dínamo de Kyiv dominam o futebol ucraniano desde os primórdios da liga local, criada com o fim da União Soviética, como vimos no primeiro capítulo desta série especial (clique aqui e confira). O que poucos sabem é que o primeiro campeão da história não é nenhum dos dois gigantes, mas uma equipe da Crimeia que acabou extinta por conta da guerra. O Tavriya Simferopol é o único time na história a desafiar a soberania de Shakhtar e Dínamo. Nesta segunda parte do especial, através da ótica de duas equipes que podem representar o passado, e o futuro do futebol ucraniano, tentamos, mais uma vez, mensurar os impactos da guerra no esporte no país. 

O futuro atende pelo nome de Karpaty, de Lviv. Líder da segunda divisão, a equipe vive na cidade que traz a esperança de dias melhores ao país, e tem a possibilidade de levar Lviv, de novo, para a elite do futebol local. 

O Tavriya Simferopol é uma equipe fundada em 1958, então com o nome Avanhard Simferopol. A equipe participou da extinta liga da União Soviética, como os principais clubes ucranianos, mas nunca chegou a ser uma potência no país. 

Em 1992, na primeira edição da Premier League da Ucrânia, o Tavriya surpreendeu a todos ao desbancar os favoritos e conquistar o título. Na final, vitória por 1 a 0 sobre o Dínamo de Kyiv, em Lviv. 

“Eles ganharam porque a temporada foi disputada apenas de fevereiro até o verão, meio ano só. Ele é o único time, além do Dínamo e do Shakhtar, a ganhar a liga”, explicou Andrew Todos, jornalista britânico especializado em futebol ucraniano. 

Oleh Kumuniar, vice-presidente da federação de futebol da Crimeia e torcedor do Tavriya, também conversou com a reportagem e relembrou a conquista de três décadas atrás. 

“Todo mundo achava que o Dínamo ia ser o primeiro campeão, mas o Tavriya fez uma grande temporada e, de forma sensacional, superou o Dínamo na decisão. Eu ouvi dizer que até as medalhas já estavam com o nome do Dínamo. Mas o jogo não terminou da forma como todos esperavam”, disse Oleh.  

O Tavriya foi o representante ucraniano na Liga dos Campeões da temporada seguinte, mas acabou eliminado ainda nas fases preliminares para o Sion, da Suíça, com derrotas em casa e fora. Na Premier League ucraniana, o time terminou apenas em oitavo. 

“O Tavriya não teve o mesmo sucesso nas temporadas seguintes. Mas alcançou a final da Copa da Ucrânia em 1994 e acabou campeão em 2010 (superou, na prorrogação da final o Metalurh Donetsk)”.

Hoje, Oleh vive em Kyiv, por conta da invasão russa na Crimeia, que começou ainda em 2014. O Tavriya também teve de mudar de casa. Tentou, a todo custo, se manter de pé. Mas não resistiu a falta de investidores em um período catastrófico. 

Em 2014, o Tavriya teve de terminar a temporada mandando jogos em diferentes cidades. Depois, perdeu os principais investidores e teve de parar de jogar a liga temporariamente. Com a escalada da invasão em 2022, o time deu mais um passo atrás. “Mas esperamos, com o fim da guerra, que o Tavriya encontre um novo investidor e volte a jogar o campeonato de novo”, sonha Oleh. 

A história do Karpaty, de Lviv, é um pouco diferente. A cidade é considerada o berço do futebol na Ucrânia. Foi lá, em 14 de julho de 1894, que um time local, chamado de Falcon, recebeu a seleção de Cracóvia no primeiro jogo registrado da história do futebol ucraniano. 

Lá, foi fundado o Karpaty Lviv. O clube emergiu na cidade no início da década de 1960, e no fim dela, conquistou a Copa Soviética, até hoje uma das maiores conquistas do futebol local e que serviu, também, de combustível para o nacionalismo ucraniano. 

O Karpaty foi, também, fundador da Premier League da Ucrânia, mas só alcançou um terceiro lugar como melhor colocação. Chegou, ainda, a duas finais de Copa. Ainda assim, era considerado o clube com a terceira maior torcida da Ucrânia. 

Após crise em 2020, porém, exacerbada com o crescimento da pandemia de Covid 19, o time declarou falência. Foi, então, reorganizado, fundado novamente sob nova direção. Como explica Taras Gordienko, diretor técnico da equipe, em conversa com a reportagem. 

“O Karpaty mais tradicional, que sem dúvida está na história do futebol ucraniano, já está extinto. Como entidade, só joga campeonatos amadores na região de Lviv. O Karpaty de hoje é um novo clube, fundado em outubro de 2020, que hoje declara que irá escrever as páginas futuras da história do futebol de Lviv e, quem sabe, do futebol ucraniano. Todos temos a oportunidade de comparar as histórias dos dois clubes, mas são diferentes, porque o clube novo não usará nada do antigo – nem jogadores, nem dirigentes, nem nenhum bem material, como centro de treinamento, etc”, explicou. 

Taras destacou, também, a importância da cidade para o desenvolvimento do futebol ucraniano, sendo formadora de esportistas importantes para o país e, também, para a extinta União Soviética. 

“O futebol de Lviv sempre foi parte importante na história do futebol ucraniano. A cidade formou atletas que defenderam a seleção soviética, que foram campeões mundiais sub-20 com a seleção soviética (em 1977), formou campeões olímpicos, atletas que chegaram a clubes como Barcelona e Arsenal. Há muitas histórias interessantes envolvendo Lviv, mas gostaria de falar sobre isso no futuro, quando acabar a guerra, porque hoje, podemos falar o que for, mas o futebol ucraniano, antes de tudo, tem de sobreviver e sobreviver junto com a Ucrânia”, desabafou, por fim. 

Apesar de liderar a segunda divisão, nadando de braçada para colocar Lviv, de novo, na elite do futebol ucraniano, o Karpaty sentiu, como não poderia deixar de ser, o impacto da guerra no país. 

“Sentimos o impacto esportivo porque muitos dos principais jogadores estrangeiros abandonaram o campeonato. Hoje em dia, os jogadores ucranianos mais promissores estão abandonando o país de forma significativa. Em consequência, o nível do campeonato diminuiu. Muitos clubes, também, abandonaram as competições e deixaram de existir ou suspenderam as atividades. Se tratam de clubes tanto das regiões ocupadas, como também de outras. A guerra afetou diversos pontos. Fez os jogos serem disputados sem públicos, e sem público, o futebol é um fenômeno completamente diferente. As partidas são jogadas de acordo com as normas de segurança. Todos os estádios devem contar com um abrigo, no estádio ou nas intermediações, onde tanto as equipes, como os organizadores dos jogos, possam ser evacuados rapidamente em caso de ataque aéreo. Baixaram, de forma significativa, os valores de patrocínio e publicidade que deveriam dar apoio financeiro ao futebol. A falta de torcedores também gera um impacto financeiro forte. Fica mais difícil, também, vender produtos do clube, não há o mesmo interesse e condição por parte das pessoas. O futebol ucraniano, hoje em dia, só tem de sobreviver, e sobreviver”, lamentou. 

Mas o futebol ucraniano, como o país como um todo, é resistência. E luta. E sobrevive. E segue. Taras destaca que a manutenção dos campeonatos, e também que as atuações da seleção ucraniana, podem servir como um exemplo de resiliência e resistência.

“É um apoio psicológico e moral. Tanto os nossos soldados, quanto as nossas crianças, muitos dos quais acompanhavam o futebol antes da guerra, tanto também os que fazem o trabalho na linha de frente, seguramente precisam do futebol. Por isso o futebol existe nos dias atuais”, refletiu. 

Lviv é considerada a capital cultural da Ucrânia. E pode, hoje, ser considerada uma das principais cidades futebolísticas do país, por receber, junto com Kyiv, os principais jogos. Taras não quer saber de clichês ou de rótulos, deixa isso para depois da guerra. Considera Lviv, sim, “um dos centros mais importantes da resistência”. E abre as portas para o futebol. 

“Não precisamos nem falar que os outros clubes são bem-vindos em Lviv. Hoje, estamos todos juntos, fazendo o mesmo trabalho: estamos preservando o futebol ucraniano como sistema, como fenômeno, e qualquer um que necessite jogar em Lviv, inclusive no estádio do Karpaty, será bem-vindo”, declarou. 

Myron Markevich foi técnico do antigo Karpaty, ainda no início dos anos 1990, na primeira edição da Premier League da Ucrânia. Entre idas e vindas em Lviv, teve trabalhos importantes também em Metalist e Dnipro. Recentemente, esteve como coordenador de seleções na Ucrânia. 

“Na verdade, eu tinha um acordo com o presidente da federação no qual depois que Shevchenko saísse, eu seria o técnico da seleção. Mas não aconteceu assim, então aceitei de bom grado a proposta do Karpaty”, revelou, em entrevista para oGol

O experiente técnico ucraniano, de 72 anos de idade, lamenta o atual momento que vive o país. Diz que a guerra “é um assunto doloroso, porque muita gente está morrendo”. Mas ao mesmo tempo entende que o conflito “uniu o país”. Nesse clima de união, tenta trabalhar o mental dos jogadores para manter o foco no campo. 

“Não é fácil. Os jogadores, de alguma forma, estão preocupados, porque os bombardeios chegaram a Lviv, e cerca de 30 pessoas morreram na cidade. Então não é fácil, mas tentamos não prestar tanta a atenção nisso porque temos a tarefa de recolocar o clube na primeira divisão e, sem dúvidas, vamos conseguir. Fico feliz que os jogadores me entendam”, comentou. 

Markevich quer jogar “pelos guerreiros” do país, que combatem nos campos de batalha em busca da manutenção do sonho ucraniano. Joga pelo orgulho da cidade de Lviv, que ainda vibra com o futebol. 

“Muitos dos nossos torcedores estão em combate nesse momento, e eles se preocupam com a gente, então não podemos perder os jogos. E no geral, Lviv, na minha opinião, é uma das três cidades mais futebolísticas da Ucrânia. Lviv é uma cidade, de fato, futebolística. E, claro, nos deixa feliz que muita gente está se preocupando com a gente não apenas na Ucrânia, mas também nos Estados Unidos, Canadá e em todo o mundo. Então, sinceramente, não temos margem de erro”, declarou. 

Igor Neves aceitou o desafio de jogar na Ucrânia mesmo com a guerra. O brasileiro estava no Al Jazira Al Hamra, dos Emirados Árabes, quando aceitou o desafio de atuar no país. E explica, para oGol, o motivo da escolha.

“O que me fez aceitar vir para a Ucrânia foi o fato de o país ser uma porta de entrada para o futebol europeu, e é um país que tem essa cultura de revelar talentos. E é um país que gosta de brasileiros. Muitos brasileiros que brilham hoje na Europa passaram por clubes ucranianos, principalmente Shakhtar e Dínamo”, disse Igor. 

O atacante, formado na base do Athletico e que já jogou no México e também na Nicarágua, revelou ainda que o fato de Lviv não ser uma cidade tão visada nos ataques russos também o deixou mais tranquilo em aceitar o desafio.  

“Estou há quatro meses na Ucrânia e me sinto muito seguro. Mesmo enfrentando a guerra, ela é real, devastadora em algumas partes do país. Mas em Lviv a vida é normal. Os ataques aqui são esporádicos. Nosso dia a dia é tranquilo. Estamos atentos e atualizados a todas as informações sobre a guerra, mas isso não influencia no futebol. A cabeça fica focada. Como falei, são ataques esporádicos, então não nos trazem preocupação extrema”, garantiu. 

Apesar da tranquilidade aparente, Igor já passou por uma situação inusitada durante uma partida em casa. Ele, e seus companheiros, tiveram de ir para o abrigo com a iminência de um ataque aéreo dos russos.  

“Houve um jogo aqui em que os alarmes tocaram e a partida teve de ser paralisada por dois momentos, por perigo de ataque. Mas, graças a Deus, não chegou aqui, as defesas ucranianas conseguiram interceptar ainda longe de Lviv, e o jogo pôde recomeçar depois de alguns minutos”, relembrou. 

Igor, que tem seis gols e uma assistência em 14 partidas na temporada, não passa alheio a realidade ucraniana. O brasileiro recorda uma história que ouviu de um companheiro de time sobre um amigo que serviu o exército local. 

“No nosso dia a dia com ucranianos, se escuta muitas histórias tristes, o que afeta todo mundo de alguma maneira. Seja pessoas da sua família que acabam servindo a guerra, ou amigos, conhecidos. Direta ou indiretamente, todos os ucranianos acabam sendo afetados. Tem um companheiro no clube que me relatou que um de seus melhores amigos resolveu servir na guerra para ajudar logo no início e, depois de algum tempo, não teve mais notícias desse amigo. Não se sabe o paradeiro dele, mas, tudo indica que ele acabou sendo capturado. Ele, como amigo, não sabe dizer como ele está. É uma das histórias que frequentemente a gente escuta”, contou. 

Em meio a relatos como este, quem vive em Lviv tenta aparentar alguma normalidade. Enquanto a cidade, berço do futebol, referência cultural e resistência contra a invasão, tenta ser uma gota de esperança no meio de um oceano de tragédias. 

Fonte: Ogol

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