O ano era 1921. A Football Association, a mais antiga federação de futebol do mundo, tomou a decisão: o futebol feminino foi banido do Reino Unido. A proibição durou 51 anos, até 1972, sob o argumento de que a prática seria inadequada para mulheres. Quase 50 anos depois, foi a vez da Arábia Saudita iniciar a própria (r)evolução, primeiro ao colocar fim às restrições para mulheres assistirem os jogos dentro dos estádios; depois com a criação de uma liga própria. Ainda que gere controvérsia, há uma decisão política clara: desenvolver o futebol feminino até ser capaz de sediar uma Copa do Mundo. E existe um grande investimento para chegar lá, com olhos voltados para todos mercados, inclusive o Brasil.
A Arábia Saudita há muito é um mercado alternativo forte no futebol, especialmente voltado para a América do Sul e mais recentemente Europa, visto como destino atrativo para aqueles em fase final de carreira. Desde a década de 80 existem esses registros, num movimento que se tornou mais forte neste século, porém mudou de figura com a midiática e surpreendente contratação de Cristiano Ronaldo. Nunca alguém próximo da envergadura do português havia se disposto a jogar no país, o que gerou um efeito contagiante para outras estrelas e ressonante até impactar o próprio futebol feminino.
O que um país onde o futebol era proibido para mulheres até 2018 tem a oferecer? A pergunta, incômoda e inevitável, se relaciona desde a ótica ocidental, sobre tradições e práticas incompreensíveis a milhares de quilômetros de distância. Mas a resposta é igualmente difícil e talvez não totalmente satisfatória, se o ponto de partida for apenas o pré-conceito sobre tudo o que envolve a Arábia Saudita, que tem uma tardia linha de desenvolvimento no direito das mulheres, como ao voto (2011) ou dirigir (2017). Contraditório (ou não), dentro de seu contexto, o país se transformou em uma terra de oportunidades.
Rafa é uma das seis brasileiras que jogam entre primeira e segunda divisão saudita neste momento. O discurso da atleta, de 35 anos, está alinhado com outras que a acompanharam nesse desafio. A maior parte delas têm o exato mesmo perfil: experientes e com longa trajetória de sucesso no futebol nacional.
“Eu vim para cá para realizar mais um dos objetivos pessoais que era jogar fora do Brasil. Estou muito satisfeita da carreira que construi no Kindermann e no Grêmio (…) Hoje eu vejo que é uma questão de você buscar fazer um pé de meia melhor para o futuro. Dentro da minha carreira, consegui me formar em educação física, tenho planos pós-futebol, mas nada concreto ainda. Quero muito ajudar a desenvolver o futebol feminino na Arábia Saudita. Tenho o objetivo de, com certeza, melhorar financeiramente, continuar jogando por alguns anos, ver uma liga forte aqui e fazer parte disso também”, declarou Tuani, zagueira de 32 anos, que chegou ao clube em uma “transferência casada”, junto de outro atleta, mas que se transferiu para o time masculino.
O choque é inevitável. Vai desde a língua, passa pela comida, religião e até vestimentas. Em agosto, Nouhaila Benzina, do Marrocos, chamou atenção internacional por ser a primeira mulher a jogar a Copa do Mundo utilizando hijab. O fato, que para o Mundial era inédito, é rotineiro na Arábia Saudita. O traje islâmico, que cobre o cabelo e a orelha das mulheres, não é obrigatório, mas é comum e a utilização varia conforme o teor religioso da família de cada atleta. Há casos, porém, de clubes em que o uso de roupas térmicas para cobrir as pernas e os braços é recomendado.
“Todas sauditas são obrigadas a jogar com calça térmica por baixo do uniforme, o hijab já não, as internacionais podem jogar normal”, explicou Rayanne Machado lateral ex-Flamengo e com passagem na seleção brasileira que recebeu do técnico português Luís Andrade o convite para voltar a trabalharem juntos no Al-Qadisiyah.
“Aqui eu não cheguei a perguntar, mas quando eu questionei isso nos Emirados vai de acordo com o tradicionalismo da família”, disse Travalão, que teve uma experiência anterior no mundo árabe, no Abu Dhabi dos Emirados Árabes.
“Quando a gente vem de fora daqui, a gente vem com uma visão que é um país extremamente fechado, tudo aquilo que a gente lê mesmo. O que vejo é que muita coisa já mudou, já evoluiu para o lado para mulher, obviamente muita coisa tem que melhorar, evoluir, mas é algo cultural”, completou Tuani.
As três jogadoras são recém-chegadas ao país. A exceção por lá é Izabela Stahelin, que também não chegou muito antes, mas na temporada passada, que inaugurou a Liga Saudita Feminina. A atleta era jogadora de Futebol de 7 e recebeu um convite por meio de amigas para se transferir. Izabela conseguiu convencer logo de cara e fora do Brasil, enfim conseguiu estabilidade como profissional, tanto que renovou com o clube e faz agora, em 2023/24, sua segunda temporada.
“Criar a liga é um objetivo desde que começamos a trabalhar em conjunto com os órgãos de governo”, declarou, à época da estreia da liga, Ibrahim Al Kassim, secretário-geral da Federação de Futebol Saudita (SAFF). Na prática, o futebol feminino começou no país em 2019, mas a liga só veio três anos depois.
Quando Cristiano Ronaldo se mudou para a Arábia Saudita, uma das justificativas apresentadas para a mudança foi o potencial da liga. Segundo o craque português, em “cinco ou seis anos será a 4ª ou 5ª mais competitiva do mundo”. A afirmação forte gerou imediatamente certa piada, que depois se converteu aos poucos em desconfiança: “será mesmo?”. Cinco meses depois daquela declaração, nomes como Neymar, Mané e Benzema se juntaram a CR7 no país.
“Acho que os ciclos por muitas das vezes tem que ser encerrados para que possamos viver novas experiências e almejar coisas maiores. É sempre muito difícil deixar o clube que ama, mas tanto eu, quanto os que trabalham comigo sabem que a decisão foi para buscar o crescimento da minha carreira fora do Brasil”, disse Rayanne.
De acordo com a lateral, a realidade na Arábia Saudita vai melhor do que a própria imaginação. A defensora reforça o apoio da federação na divulgação da modalidade, como na transmissão dos jogos. O tema, por exemplo, é algo que dentro do próprio Brasil é problemático: em 2023, o Brasileirão Feminino não teve transmissão de todos os jogos, já que o grupo detentor dos direitos optou por transmitir somente duas das oito partidas por rodada, tornando-se dependente dos clubes mandantes a veiculação (ou não) por seus canais oficiais.
“Eu conversei um pouco com a Rayanne e com a Rafa. Me surpreendi muito com a infraestrutura, me surpreendi demais. Nós ficamos nos melhores hotéis da cidade, estão sempre preocupados e temos tudo do bom e do melhor. Não temos contato com o pessoal do futebol masculino, mas acredito que a estrutura seja muito parecida, porque é muito acima de todos os clubes do Brasil”, disse Tuani.
A decisão estratégica de desenvolver o futebol feminino na Arábia Saudita tem dois aspectos. A acusação que sempre toca o país, uma monarquia absolutista sem direito a eleições, avaliado por órgãos internacionais como ditadura, é de utilizar o esporte como um meio para sportwashing. O termo em inglês tem ganhado popularidade para explicar a prática de “limpar” ou “melhorar” a imagem de uma nação, grupo ou empresa com ações positivas no âmbito esportivo. A outra, meramente esportiva mesmo, é aprimorar a própria qualidade local para se tornar competitiva.
A nível de seleções, a Arábia Saudita nutre certa tradição no futebol masculino. A seleção participou de seis Copas do Mundo, é tricampeã da Copa da Ásia e bicampeã da Copa das Nações Árabes. O mesmo desempenho, logicamente, não pode ser observado no futebol feminino, que ainda engatinha para quem tem ambição de sediar o mundial feminino daqui 12 anos, em 2035. Para se dimensionar a disparidade, a seleção feminina ocupa o lugar 172 do Ranking da Fifa, a pior colocada entre as seleções asiáticas. Enquanto isso, a masculina tem a posição 54, a quarta melhor da AFC.
Rafa Travalão, que entre as brasileiras que jogam na Arábia Saudita é única com experiência internacional anterior, fez um comparativo do futebol saudita com o dos Emirados Árabes. Há quatro anos, a jogadora teve uma passagem pelo Abu Dhabi.
“O nível técnico das jogadores sauditas para as emirates ainda vejo um pouco de diferença. Acho que lá estava um pouco mais desenvolvido nessa parte das jogadoras locais, mas também é de se esperar, aqui está muito mais recente essa questão da mulher”, opinou.
Existe um interesse comum e declarado entre as brasileiras que jogam no país: o objetivo é seguir na Arábia Saudita. Mas será possível? As ações de desenvolvimento do futebol feminino no país indicam apenas evolução, sem tempo para olhar para trás e ver tantos anos perdidos.
O que corre contra a certeza de futuro no país é justamente sua jovialidade. Novo, o Campeonato Saudita tem calendário enxuto, de outubro até março, e contratos consequentemente curtos para as atletas. A única garantia para todas é a permanência até o fim da temporada, mas e depois disso?
“É um calendário diferente do futebol brasileiro, mas dependendo da prioridade que a atleta dá para a carreira neste momento dá para suportar sim. Vai evoluir muito a questão do futebol”, disse Tuani, com tom de otimismo.
“Essa é uma das questões mais difíceis por aqui. Eu realmente vim com um contrato bem curto, mas eu vim na intenção de ajudar no desenvolvimento, então vim para poder repetir mais temporadas por aqui e assim permanecer mais tempo”, ponderou Rafa Travalão.
Conforme mapeado por oGol, além das brasileiras, existe hoje na Arábia Saudita jogadoras de, pelo menos, 22 outros países: Espanha, Colômbia, Jordânia, Nigéria, Tanzânia, Paquistão, Argélia, Marrocos, Tunísia, Gana, Costa do Marfim, Estados Unidos, Barehin, Camarões, Líbano, Iraque, Panamá, Holanda, Venezuela, Inglaterra, Suécia e França. O número é bastante representativo, mas a fatia abraçada pelas mulheres ainda é aproximadamente a metade que a Liga Saudita masculina, que tem 156 estrangeiros de mais de 40 nacionalidades diferetentes – os brasileiros são maioria (28).
Os números exagerados apenas exemplificam um movimento que talvez ainda não tenha sido percebido. O investimento do futebol na Arábia Saudita tem sido levado a sério, mesmo no feminino que ainda parece uma revolução incompreensível ou silenciosa. As brasileiras que desafiam o antes proibido esporte no país são a prova dos capítulos a serem escritos.
Fonte: Ogol
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