O cheiro da grama molhada. O barulho do chute na bola. A festa das torcidas. 90 minutos de jogo. Em campo, muita coisa se decide. Mas quem limita a visão ao jogo nas quatro linhas é condicionado a presenciar apenas uma parte da história. A história de um jogador de futebol vai muito além do que se vê no campo. A história de João Pedro Galvão começou a ser escrita em Ipatinga.
Aliás, como tem gente de Ipatinga por aí, provoco ele. “Estamos em todos os lugares”, brincou de volta. JP Galvão está em Kingston upon Hull, que para quem não sabe, é a cidade do Hull City. O clube atualmente joga a Championship, na Inglaterra. Mas para chegarmos lá, temos de falar, antes, do menino de Ipatinga…
JP Galvão tem, como conta, o futebol no sangue. Seu pai jogou em divisões menores. Quando menino, JP o acompanhou na várzea. A vida não era das mais fáceis, mas a família fez de tudo para apostar no sonho do menino, que começou a fazer escolinha de futebol aos dez anos.
“Quando você vem do nada, cria uma necessidade de conquistar algo, independentemente da sua situação. É óbvio que isso vem da boa educação em casa, que te ajuda a seguir caminhos corretos. No entanto, percebi, durante esses anos fora e treinando com garotos mais novos fora do Brasil, que o brasileiro, ou sul-americano, quando tem uma única chance de vencer na vida, acaba desenvolvendo uma capacidade maior de aprender ou de suportar dificuldades. Ele cai, se levanta e tenta novamente, ao contrário de alguém que está apenas pelo amor ao esporte. Isso não quer dizer que garantirá que você chegue ao topo, mas estatisticamente é claro que os jogadores que tiveram uma infância mais difícil tendem a alcançar posições mais altas ou ir mais longe do que os demais”, ressaltou, em conversa com a reportagem de oGol.
Com 13 anos, JP Galvão foi selecionado por um olheiro em um campeonato no Espírito Santo para jogar na base do Atlético Mineiro. Lá se formou, como jogador, como pessoa. Teve o primeiro contato com a saudade de casa. Com a distância da família. Com o que seria sua vida nos anos seguintes. E tinha claro o que queria que fosse sua vida.
“Na minha cabeça, eu só pensava que ia me tornar um jogador profissional. Apenas precisava passar por aquela fase mais jovem e, quando tivesse a idade, poderia jogar. Acho que isso me ajudou a não sentir tanta pressão e insegurança sobre se eu conseguiria ou não. Talvez esse tenha sido o ponto-chave para eu ter chegado ao profissional”, explicou.
Estreou pelo Atlético como profissional no dia 23 de maio de 2010, uma vitória sobre o Athletico Paranaense, no Mineirão. Entrou no lugar de Corrêa, sob o comando de Vanderlei Luxemburgo. Um dos grandes mentores de sua carreira. Os conselhos de Luxa, guarda até hoje. Guarda como conselhos “de um pai”.
“O professor foi literalmente como um pai para mim. Eu tinha apenas 18 anos e, logo que subi, já comecei a jogar com ele. Ele me dava muitos conselhos sobre como lidar com o primeiro impacto de se tornar profissional, além de saber como enfrentar a pressão e a visibilidade que um jogador enfrenta. Ele me transmitia muita confiança e suporte para suportar a pressão de jogar em um time da grandeza do Galo. Ele é um vencedor. E os vencedores vão ter sempre alguma coisa a mais que o restante. E estar do lado de pessoas vencedoras vai te dar sempre algo de você pode absorver. Ele sempre dizia que o que eu fiz hoje, já virou passado. Amanhã, tenho que fazer de novo e melhor, ou o futebol vai me engolir e eu ficarei para trás”, relembrou.
JP Galvão lembraria das conversas com Luxa muitas vezes ao longo da carreira. Mas nunca, na verdade, se deixou ser engolido pelo futebol. Por que, por mais que em alguns momentos tivesse que dar um passo atrás, em seguida dava dois para frente.
Ainda em 2010, chegou na Itália pela primeira vez, para jogar no Palermo. Na época, a Serie A era provavelmente a liga mais visada do mundo, com a Inter de Mourinho no topo da Europa. JP Galvão lembra de ter realizado um sonho ao se mudar para o país.
“Naquela época, muito mais do que agora, a gente sonhava em jogar na Europa. Eu não participei do Estadual e ainda houve a pausa para a Copa, então foram poucos jogos até a janela de transferências abrir. Quando chegou a proposta, eu não pensei duas vezes. Economicamente, era muito bom para mim, e eu teria a oportunidade de realizar o sonho de jogar na Europa, no Campeonato Italiano, que naquela época era considerado o melhor campeonato do mundo”, explicou.
Na época, o atacante ainda não estava pronto para jogar na Itália. Ou para aquele projeto em específico. Acabou dando o primeiro passo atrás. Mas já pensando lá na frente. “Quando saí, fui literalmente com o pensamento de voltar mais velho e um pouco mais maduro, para então poder jogar bem e me firmar”.
Buscando o amadurecimento, o brasileiro teve experiências em outras ligas. Jogou em Portugal (Vitória e Estoril), no Brasil (Santos) e curiosamente no Uruguai, onde viveu intensamente a Libertadores de 2012 com o Peñarol.
“O Aguirre me ligou durante toda a janela, me chamando para ir para lá. Eles tinham acabado de ser vice na Libertadores. A princípio, eu não queria sair da Europa para ir ao Uruguai, mas ele acabou me convencendo. Posso dizer que foi talvez a melhor experiência que eu tive. Jogar a Libertadores pelo Peñarol foi muito impactante. O jeito como eles vivem aquele campeonato é diferente. Eu tinha 19 para 20 anos na época. Foi uma oportunidade sensacional”, contextualizou o atacante, que garante torcer para o Peñarol ganhar a atual Libertadores.
No Brasil, ainda antes de voltar para a Itália, JP Galvão teve a oportunidade de trabalhar com outro técnico histórico, Muricy Ramalho, com quem teve a oportunidade de aprender um tipo de liderança diferente.
“Muricy tem um perfil diferente, mais sério, mas consegue extrair o seu lado competitivo. Ele quer vencer sem muita conversa e sem enrolação. A abordagem é: vamos fazer tudo para vencer. Isso é interessante porque me mostrou como cada um tem sua própria receita. Cada um tem seu caminho para chegar primeiro. E se você for inteligente, consegue aprender sempre, independentemente de conseguir vencer ou não. A próxima oportunidade logo se apresenta”, contou.
JP Galvão voltou para a Itália em 2014, após passagem pelo Estoril em Portugal. Assinou com o Cagliari, e construiu uma bonita história de idolatria no clube nas oito temporadas seguintes. Mais experiente, estava pronto para a oportunidade.
“Tudo serviu como aprendizado para eu poder juntar tudo e fazer o que fiz no Cagliari. Certamente, não foi algo absurdo, mas acho que foi algo diferente. Foram oito anos em um campeonato muito difícil, onde fiz história jogando em um clube tradicional, embora não lutasse por títulos. Isso sempre terá um lugar especial na minha carreira”, analisou.
Lá, teve a oportunidade de conhecer Gigi Riva, um dos maiores ídolos da história do futebol italiano e ídolo máximo do Cagliari. Riva foi um exemplo que ajudou a moldar a história do brasileiro na Sardenha.
“Quando fui para lá, meu pai logo me perguntou: ‘Não é esse time que jogava o Gigi Riva?’ Eu não sabia, mas quando disse que sim, ele comentou que o Gigi Riva jogava demais. Em Cagliari, se respira Gigi Riva. Ele é o maior artilheiro do clube e da seleção italiana. À medida que fui subindo na tabela de marcadores e ficando mais tempo no clube, fui entendendo ainda mais o que ele representava. Um ícone do futebol italiano. Quando o conheci, foi muito emocionante, porque eu já era uma referência, e poder bater um papo com alguém da sua grandeza é extremamente estimulante e emocionante”, contou.
Como Riva, JP Galvão teve a oportunidade, também, de vestir as cores da seleção italiana. Naturalizado, o atacante fez seu único jogo pela Azzurra contra a Macedônia do Norte, no fatídico jogo que afastou a Itália da Copa de 2022. O que não apagou, em JP, a sensação de vestir uma camisa tão tradicional.
“Fiz parte da seleção brasileira desde a sub-15 até a sub-20. Minha ligação com a Itália é muito forte, pois minha esposa é italiana e meus filhos nasceram e cresceram lá. Quando a possibilidade surgiu no começo, eu não acreditei, mas depois que caiu a ficha, foi uma sensação incrível. Percebi que tudo o que eu havia feito realmente teve um significado grande. Infelizmente, ficamos fora da Copa, e isso doeu muito, pois fiz parte desse processo. Mas foi incrível ter chegado tão alto assim”, fez questão de ressaltar.
Do encontro com o ídolo ao acesso para a Serie A. Foram muitos momentos marcantes no Cagliari. Mas o mais difícil foi a despedida, após 271 jogos e 86 gols.
“Quando fui buscar minhas coisas no clube e percebi que tinha acabado foi bem duro. Passa de verdade um filme na cabeça de tudo. Fiz muitas amizades ali dentro, foi difícil ir embora. Por mais que tenha sido no momento certo da minha carreira. Fui para lá jovem e sai um homem”, ressaltou.
João Pedro Galvão voltou ao Brasil em 2023, para jogar pelo Grêmio. Foram 45 jogos pelo Tricolor, com três gols e uma assistência. Mas o atacante traz uma reflexão que vai muito além dos números. Conversávamos sobre exemplos de jogadores que não conseguiram se adaptar em diferentes contextos competitivos, muito devido ao modelo de jogo. Como James Rodríguez, um jogador na Colômbia, e outro no São Paulo…
“Às vezes, se avalia de uma forma superficial. Poderíamos citar muitos outros exemplos, como o do James. Eu estava muito convencido de ir para o Grêmio e que daria certo. Foi só um ano, mas pareceram dez. A adaptação ao futebol brasileiro não encaixou, e isso faz parte. O futebol é bom por causa disso. Eu já estava experiente e havia vivido muita coisa no esporte, achei que nada poderia me atrapalhar. Mas acabou não encaixando. Criou-se uma narrativa injusta, principalmente para alguém que já havia mostrado muito antes. Isso serviu de experiência mais uma vez para mim”, disse JP, em balanço.
“O Grêmio é um clube imenso. Fui vice-campeão brasileiro jogando e campeão gaúcho, participando da maioria dos jogos. É óbvio que eu tenho consciência de que fui muito abaixo em termos de produtividade. Mas o julgamento foi injusto e prejudicou bastante a minha imagem, que já era consolidada. Temos que nos reafirmar constantemente, e isso é natural na competitividade. Fui embora chateado com a situação, mas com a consciência tranquila de que sempre dei o meu melhor”, completou, certamente lembrando do conselho de Luxemburgo mais de uma década antes.
Agora, JP Galvão busca um novo recomeço. Como já fez algumas vezes na carreira. Em um contexto diferente: chegamos, enfim, a Kingston upon Hull, a cidade que abraça o brasileiro. O atacante realiza um sonho de muito tempo, de poder viver o futebol na Inglaterra.
“O futebol inglês sempre me instigou. É físico, tático e muito intenso. Fui paciente em esperar a oportunidade certa na minha carreira. Precisava de um lugar que me fizesse sentir de novo a paixão pelo jogo. Quero poder usar tudo o que aprendi sobre futebol em um ambiente diferente para mim. Estou de volta ao centro. A adaptação é diferente, mas continua sendo na Europa. A atenção aos detalhes do jogo é muito parecida com a da Itália. Estou muito empolgado, porque sei que vou ter que extrair o melhor de mim para poder render o que eu desejo”, comentou.
Ídolo na Sardenha, o menino de Ipatinga certamente não projetava uma carreira tão bonita quando acompanhava o pai na várzea. Mas segue, aos 32 anos, sonhando em ir além.
“Quero poder recuperar minha confiança, jogar feliz e desfrutar do que gosto de fazer, competir. Aqui, vou ter que me entregar ainda mais para conseguir repetir os melhores momentos da minha carreira”.
Fonte: Ogol
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