Quinta-feira, Novembro 14, 2024
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Ciência do gol: da nostalgia dos petardos à ‘Era dos Dados’

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Qual torcedor do Flamengo não lembra do gol de falta de Petkovic contra o Vasco, em 2001? Provavelmente, também, as cobranças de Marcelinho Carioca fazem parte das memórias mais doces do torcedor corintiano. O Galo “endoidou” tantas vezes com a “bomba de Vespasiano”. Chute tão potente, e marcante, teve Roberto Carlos, pentacampeão mundial… Hoje, porém, esses momentos são nostalgia. Você lembra o último gol de fora da área de seu time? Lembra quando um petardo de fora da área te fez explodir na arquibancada (ou mesmo na frente da TV)? Provavelmente, faz tempo… O futebol mudou. Entramos na “Era dos Dados”… 

Afinal, isto não é mal… oGol é, na verdade, uma grande base de dados. A maior do futebol. Nela, buscamos que houve uma considerável queda o número de gols de falta no Brasileirão (de 52 gols em 2010 para apenas 18 em 2023). Os gols de fora da área, que chegaram a representar 21% do total de gols em 2010, representaram apenas 15% em 2023, e apenas 13% no ano anterior. 

Olhamos além, da nossa base de dados e do Brasileirão. Na Premier League, houve uma queda de 10% dos gols de fora da área na última década. De acordo com números do Stats Perform, na temporada 2006/07, 22% dos gols (sem contar os de pênaltis) foram marcados de fora da área. Na última temporada do Inglês, o número caiu para 12%. De acordo com a mesma plataforma estatística, o número de chutes de fora da área caiu 32% em uma década. A tendência de queda se repete nas cinco principais ligas da Europa. 

Chegamos a um fato: não temos tantos gols de falta ou em arremates de fora da área como antes. No Brasil e fora. Procuramos, então, explicá-lo. Ouvimos analistas, ex-jogadores, jogadores e treinadores no Brasil, na Inglaterra e em outras ligas. Eles nos ajudam a contar essa história. 

O futebol cada vez mais se apresenta como uma ciência, longe de ser exata. Na análise de desempenho, os dados quantitativos e os qualitativos andam juntos, como na ciência. Ricardo Pombo Sales, coordenador do curso de análise de desempenho da CBF Academy e ex-analista de desempenho da seleção feminina, ressalta o papel dos “dados” no futebol moderno. 

“Eu acredito que a análise de desempenho baseada em dados consistentes ajuda a elucidar as oportunidades do jogo. De uma forma mais clara, é saber os locais e alternativas que tem maior probabilidade de dar certo e evitar aquelas que não geram resultado”, explicou Ricardo Pombo, que ressaltou, ainda, que números apenas não são suficientes.

“É preciso replicar tais situações no treino para que o atleta vivencie todas as possibilidades e sinta as facilidades e dificuldades que os números mostram, afinal, se não fizer sentido para o atleta, ele não executa”, completou. 

O uso de números e dados para facilitar a compreensão do jogo por parte dos atletas é cada vez mais comum. Billy Coulston, ex-analista de desempenho do time principal do Newcastle e também técnico das divisões de base do clube, destaca que a incorporação em dados no feedback de treinadores para atletas “pode aumentar significativamente o engajamento por parte dos jogadores”. 

A grande questão a seguir é: o que os jogadores fazem com os dados? O quanto eles interferem na tomada de decisão dos atletas no campo? Karim El-Shesheiny, ex-analista de bola parada no Zamalek SC, do Egito, e atualmente analista de bola parada do site Total Football Analysis, acredita na tomada de decisão influenciada pela análise de dados. 

“Historicamente, jogadores tomavam decisões com menos informações e confiavam mais nas improvisações”, opinou Karim, que citou uma estatística que prevê que chutes de pelo menos 23 metros resultam em gol em apenas uma vez a cada 33 tentativas. O que nos leva a estatística do xG

Didaticamente, podemos resumir o xG (gols esperados) como uma métrica que indica a probabilidade de um arremate resultar em gol, considerando fatores como a posição e o tipo do chute, como a bola chegou em zona de finalização, etc. 

Stephen Gillett, nosso parceiro do playmakerstats, que é fonte estatística para o Brentford, da Premier League, destacou a importância do xG no futebol moderno.

“A influência do xG é cada vez maior. As equipes estão jogando com as probabilidades, e a chance de marcar de fora da área com muitos jogadores à frente é mínima. É melhor trabalhar uma oportunidade mais próxima do gol, ganhar uma falta ou tentar algo preparado em uma bola parada”, destacou Stephen. 

O jornalista escreveu recentemente um artigo para o site do Brentford destacando o clube como o melhor xG da liga. “Um dos pilares da abordagem de Thomas Frank (técnico dos Bees) é priorizar a criação de chances de alta qualidade”, escreveu em certa parte do artigo, intitulado “Qualidade acima de quantidade: Brentford liderando a Premier League na estatística de xG”.

Curiosamente ao longo deste final de semana, Hulk deu um exemplo prático de como os dados podem influenciar a decisão de um jogador em campo. Contra o Vasco, o atacante marcou o gol que garantiu a classificação atleticana de uma posição do campo que ele tanto buscou. 

Segundo Hulk, a análise de desempenho já havia o orientado sobre a melhor posição para superar o goleiro Léo Jardim. Quando recebeu uma bola na entrada da área pelo lado direito, com espaço e corpo bem posicionado, Hulk não pensou duas vezes. Depois do jogo, explicou.

“Agradeço ao meu scout, que faz um trabalho excepcional. Ele falou que hoje a chance de fazer gol seria no canto direito no alto do goleiro, ou cruzado no canto esquerdo do goleiro no chão. A primeira oportunidade que eu tive de bater no canto direito no alto, eu fui feliz”, revelou. 

Antes do jogo, Hulk, portanto, já teve acesso a informações não apenas de quais posições do campo teria mais chances de fazer gols. Mas também em qual tipo de chute o goleiro vascaíno teve mais dificuldade para reagir. De onde chutar, aonde chutar. Dados interpretados em tempo real para uma tomada de decisão de segundos. Que, neste caso, valeu uma vaga na final da Copa do Brasil.

O futebol evoluiu como jogo. Muito além dos números. A influência dos dados, podemos concordar, é significativa, mas há tantos fatores a se levar em consideração ao analisar um jogo… O componente tático nos traz um panorama peculiar. Evoluiu imensamente nos últimos anos, e continua a evoluir todos os dias. Essa (r)evolução tática é vista como outro fator decisivo para a diminuição no número de tentativas de arremates de fora da área. 

“A evolução das táticas, particularmente a prevalência do jogo posicional e os padrões de treinamentos durante a semana, pode ofuscar o impulso instintivo de chutar, e isso pode ser porque eles (jogadores) têm outras boas opções, mesmo que não sejam forçados pelo treinador (a optar por elas)”, ressaltou Karim, endossado por Billy. 

“Concordo que os treinadores tendem a desencorajar chutes de longa distância, provavelmente devido a uma ênfase maior na manutenção da posse de bola e uma maior consciência da baixa probabilidade de marcar gols de longa distância”, pontuou. 

Olhando o jogo de trás para frente, houve uma considerável evolução dos sistemas defensivos. Lúcio Flávio, ex-jogador de Atlético Mineiro, Botafogo, Santos e São Paulo e que recentemente foi técnico do Glorioso, destacou esse ponto. 

“Uma das coisas que observo em relação ao que a gente via no passado, são equipes mais organizadas defensivamente. Grande parte jogam com duas linhas de quatro, ou sempre dois jogadores bem posicionados na frente da área. Isso é uma forma de dificultar esses chutes”. 

O meia Diego Torres, hoje na Série B pelo Amazonas e que jogou o Brasileirão pela Chapecoense, dá a perspectiva do campo, de como se tornou mais difícil, pela forte marcação, arriscar de fora da área. 

“Hoje em dia, o futebol é muito mais competitivo, não dá muito espaço, porque sabe que se der espaço, qualquer chance de chute é perigo de gol. Por exemplo, se um rival sabe que você pega bem na bola, nunca vai te dar espaço. O futebol mudou muito, não tem muito espaço para quem pega bem na bola. E você tem menos espaço para chutar, e também para pensar”, comentou. 

No futebol, chamamos de “defesa do funil” a estratégia de proteger a área central do campo, especialmente próxima à grande área, onde as chances de gol são mais perigosas. A defesa “orienta” o ataque a jogar por zonas menos perigosas. O Corinthians, de Tite, foi um grande exemplo de defesa eficaz do funil. Fabio Carille, hoje no Santos, sempre cita esse trabalho de Tite como referência na defesa do funil, entre outros técnicos da nova geração. 

Aí funciona a seguinte lógica: se o xG (probabilidade de gols) é maior na zona do funil, é lá que eu vou defender melhor. Cada vez menos, os atacantes têm espaços para finalizar de longe. Há sempre, claro, as exceções à regra. O atacante brasileiro JP Galvão, ex-Grêmio e hoje no Hull City, da Inglaterra, lembra de um ex-companheiro de seleção italiana e rival nos tempos de Cagliari. 

“Joguei com o Barella, que é um cara que arrisca muito, chutando de todas as formas, sem pensar se vai errar. Obviamente, ele erra em muitas ocasiões, mas quando acerta, acaba fazendo grandes gols de longa distância”, citou JP, que, por outro lado, concorda com a visão de Lúcio Flávio e Diego Torres. 

“Hoje em dia, há menos espaço, e as leituras são diferentes de antigamente. Talvez se arriscasse mais chutes do que se arrisca hoje”, concordou. 

Você, provavelmente, já ouviu o termo “jogada de laboratório”. As jogadas ensaiadas em cobrança de falta se tornaram cada vez mais decisivas no futebol hoje em dia. O já citado Brentford é um exemplo disso na Inglaterra. Já abordamos, inclusive, a importância do analista de bola parada no futebol moderno (clique aqui para ler mais). Nomes como Bernardo Cueva, do próprio Brentford, e Nicolas Jover, do Arsenal, são referências no assunto. 

As jogadas cada vez mais trabalhadas, segundo Karim El-Shesheiny, diminuem, um pouco, as chances de gols de falta no futebol moderno. 

“É possível que a mesma equipe jogue três partidas consecutivas sem uma única tentativa de falta direta. Suspeito que isso também se deva às táticas, particularmente às estratégias modernas de bola parada, que têm planos precisos para executar faltas de várias áreas do campo”, ressaltou. 

Billy Coulston é fundador do Creative Set Plays, plataforma que ajuda jogadores e técnicos a tomar decisões criativas em jogadas de bola parada. Ele reflete sobre a queda no número de gols de falta. 

“Os jogadores podem estar escolhendo chutar com menos frequência, mas é importante não ignorar outros fatores. O tipo de bola usado pode afetar o quanto de movimento um jogador pode gerar ao bater uma falta, e os goleiros melhoraram significativamente, assim como as estratégias defensivas, com jogadores deitados atrás da barreira”, ressaltou.

Lúcio Flávio, exímio cobrador de faltas nos tempos em que atuava, também destaca a evolução dos goleiros, “com estatura acima do que eram no passado”, mas cita outro fator decisivo. 

“Uma das razões que observo nessa questão da diminuição do número de gols de faltas é pela diminuição de tempo de repetição, de treinamento… Hoje, o volume de treinamento nesse sentido é bem menor, haja visto o controle de carga que os jogadores recebem”, apontou. 

Diego Torres lembra ter feito cerca de 15 gols de falta na carreira. Confirma que, de fato, treina menos faltas. “Realmente, os treinadores me deixam treinar falta só dois dias antes (do jogo), para não sobrecarregar o adutor. Chuto de dez a 15 bolas de cada lado”. 

Com menos espaço nos treinos para as cobranças diretas de falta e uma maior relevância nos lances ensaiados, é cada vez menor a chance de vermos um gol de falta hoje. Qual foi o último gol de falta da seleção brasileira? Galvão Bueno, nas transmissões da seleção, perguntava quase sempre isso quando surgia uma falta perto da área. E a resposta sempre remetia há anos… 

O futebol virou um esporte de laboratório? É um jogo cada vez mais previsível? Perdeu-se a magia? A conclusão, inconclusiva, nos remete ao motivo que nos faz amar este esporte: não há uma resposta certa. Como sempre, não há uma única forma de se vencer. Como Billy Coulston bem resume: 

“A beleza deste jogo é que não há opiniões definitivamente certas ou erradas, permitindo que times e jogadores encontrem sucesso em vários estilos. A maioria dos torcedores concordaria que não há nada como ver um jogador do seu time acertar um chute no ângulo de 30 metros de distância. No entanto, a realidade é que para cada chute espetacular que encontra o gol, muitos outros são bloqueados, erram o alvo ou são defendidos. Acredito que as equipes optando por chutar com menos frequência de longe deu mais controle à equipe que ataca e contribuiu para um jogo mais elaborado no terço final”. 

Afinal, não queremos um jogo elaborado? No fim, o que importa mais: estética ou resultado? Encerro com mais perguntas do que respostas, porque a beleza da questão está mesmo aí: na pluralidade de visões. E são elas que vão nos fazer evoluir. Em que direção? Não se sabe. Talvez nos levem para a nostalgia dos chutes de Éder, das cobranças de falta de Roberto Carlos. Ou para a próxima era do futebol…

Fonte: Ogol

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