A guerra entre Israel e Hamas, que está prestes a completar um mês, piorou uma situação que já era difícil de ser solucionada: a crise de refugiados. A Organização das Nações Unidas (ONU) mostrou essa semana que a quantidade de pessoas deslocadas de suas casas à força em todo o planeta superou a marca de 114 milhões, um número recorde. Esses deslocamentos acontecem por uma série de motivos: guerras, perseguição, violência, violações dos direitos humanos, entre outros, sempre em razão da interferência humana. No primeiro semestre de 2023, as principais causas de deslocamento forçado foram os conflitos na Ucrânia, Sudão, Mianmar e a República Democrática do Congo, a crise humanitária do Afeganistão e uma combinação de secas, inundações e insegurança na Somália, segundo o ACNUR (agência de refugiados na ONU). De junho a setembro, houve um aumento de 4 milhões de refugiados.
Porém, quando se fala desta situação, é nítido ver algumas diferenças na forma de recepção dos refugiados. Quando a guerra na Ucrânia começou, em fevereiro de 2022, uma grande onda de deslocamento forçado pôde ser vista. Vários países, rapidamente, se prontificaram em receber essas pessoas. Contudo, quando olhamos para os palestinos que estão na Faixa de Gaza, o mesmo cenário não se repete. Mesmo em meio à crise humanitária que toma conta da região desde que um cerco total foi imposto por Israel no segundo dia da guerra, as fronteiras não são abertas para a recepção dessas pessoas que vivem, atualmente, em meio aos recorrentes bombardeios de Israel e a ameaça de uma incursão terrestre israelense que deve aumentar ainda mais o número de mortos na região. Eduardo Saldanha, doutor em direito internacional, explica por que há essa diferença entre o tratamento dado a ucranianos e palestinos.
“A alternativa do povo palestino é o Egito, pela passagem de Rafah, ou Israel, que está em conflito neste momento. Há somente dois países que poderiam acolhê-los”, inicia. Saldanha pontua que há dois tipos de mecanismo de direitos humanitários dos refugiados: assistência emergencial (apoio que se dá para aqueles que estão chegando ou tentando sair, algo temporário que não demore muito tempo) e o acolhimento e resiliência, que, em linhas gerais, significa dar condições de vida a essa pessoa. “Estamos falando de mais um milhão de refugiados, e só o Egito tem condições de resiliência e acolhimento. Ocorre que se trata de algo permanente e não temporário. É uma conta muito grande de se pagar”, explica. Professor de Relações Internacionais da PUC São Paulo, Rodrigo Amaral cita outros fatores evidentes, como: a dimensão racial e as violências estrutural e cultural. “É evidente que existe uma aceitação maior dos ucranianos porque eles são brancos e europeus, diferente dos árabes, largamente vistos de uma maneira xenofóbica e racista, como causadores dos conflitos internacionais”, afirma, acrescentando que há uma normalização da violência no Oriente Médio.
Amaral diz que desde o começo do conflito em Gaza, iniciado em 7 de outubro, quando Hamas atacou Israel. existe uma posição interessante de ser observada por parte dos países que fazem fronteira com Gaza (Egito) e com a Cisjordânia (Jordânia). Os dois Estados lavaram as mãos no sentido de servir de espaço para refúgio dos palestinos que estão no cenário de guerra em Gaza. “Quando notamos o decorrer da guerra, esses atores falam do imediato cessar-fogo e da necessidade de abrir corredores humanitários, mas esse posicionamento não acontece pela concepção humanitarista, propriamente dita; isso se dá por duas razões: primeiro, pela pressão popular, que cobra solidariedade à questão palestina. Em segundo lugar, pela falta de vontade de arcar com custo dos refugiados”, explica. O professor lembra, ainda, que a Jordânia já recebeu milhões de refugiados no passado e, por essa razão, hoje se posiciona de maneira restrita para o recebimento desses refugiados.
Segundo a ONU, os países de baixa e média renda abrigaram 75% das pessoas refugiadas e outras pessoas que precisam de proteção internacional. Mais do que isso, em todo o mundo, 1,6 milhão de novos pedidos de asilo individuais foram feitos nos primeiros seis meses, o maior número já registrado. O relatório é lançado no período que antecede o segundo Fórum Global de Refugiados (GRF), o maior encontro do mundo sobre refugiados e outras pessoas deslocadas à força, em Genebra, de 13 a 15 de dezembro. Governos, pessoas refugiadas, autoridades locais, organizações internacionais, sociedade civil e o setor privado se reunirão para fortalecer a resposta global e buscar soluções para os níveis recordes de deslocamento.
Segundo os especialistas ouvidos pela Jovem Pan, existe uma explicação para isso. “É um padrão geográfico”, resume o professor Rodrigo Amaral. “O que observamos, por exemplo, na Europa, nos Estados Unidos, são Estados que, curiosamente, são os maiores líderes mundiais e responsáveis pela criação do sistema ONU”, explica, destacando que é esse sistema que determina as regras internacionais sob o refúgio. “Contudo, nota-se que são Estados que não recebem e que têm uma grande postura avessa à entrada de imigrantes, de maneira geral”, acrescenta. Diante desta recusa, segue o analista, os refugiados geralmente vão para os espaços onde não há uma militarização anti-imigração tão ativa. Mais uma vez, a guerra na Ucrânia acaba sendo uma exceção, visto que a maioria dos conflitos também acontece em países mais pobres.
Eduardo Saldanha diz que uma forma de amenizar a crise dos refugiados ou deslocados seria uma reforma da legislação internacional e uma modernização do direito internacional dos refugiados. Isso implicaria, contudo, em uma discussão muito grande, já que a escolha de aceitar refugiados ou não precisa continuar sendo uma decisão soberana dos Estados. “Obviamente, isso dificulta que esses deslocados sejam recolocados ou sejam acolhidos em determinados países, mas cada país continua e deveria poder exercer a sua soberania territorial”.
A Faixa de Gaza, que antes da guerra no Oriente Médio tinha 2,2 milhões de habitantes, tem atualmente mais de um milhão de refugiados internos. Com isso, surge uma questão: para onde levar essas pessoas? Desde o início do conflito, os países árabes vizinhos se viram diante de um trauma histórico, principalmente Egito e Jordânia: a Nakba, que, em árabe, significa catástrofe e faz referência ao êxodo forçado de 760.000 palestinos na guerra que levou à criação do Estado de Israel há 75 anos. As advertências de Israel à população para que deixassem o norte de Gaza antes de uma iminente invasão terrestre alimentaram temores históricos, pois um milhão de moradores de Gaza já foram obrigados a abandonar suas casas. Eduardo Saldanha enfatiza que estamos diante de outro êxodo forçado e que toda crise humanitária pode receber essa classificação. “Faz parte do conceito fundamental do que é crise humanitária, que é o deslocamento forçado de pessoas e preenche os requisitos da lei internacional, de direito internacional dos refugiados e do direito humanitário”, explica, citando também os casos de Ucrânia e Venezuela.
Esse conflito no Oriente Médio trouxe à pauta outra discussão que há anos está paralisada, mas que boa parte dos países, incluindo o Brasil, apoia: a criação do Estado da Palestina. Saldanha explica que, apesar de haver apoio da comunidade internacional, o grande problema existente é a aceitação dos israelenses. “A grande dificuldade está na aceitação do próprio Estado de Israel em permitir a criação de um Estado palestino na Faixa de Gaza, o que é problemático por questões políticas e religiosas”, diz. Rodrigo Amaral, por sua vez, lamenta que o caos no Oriente Médio não esteja servindo para que haja uma retomada das discussões sobre esta pauta nas reuniões do Conselho de Segurança da ONU. Para ele, esta é uma realidade ainda bem distante de acontecer. “Esse é um tema que os palestinos têm levantado. Essa é a razão pela qual o Hamas atacou Israel, na verdade. Não podemos esquecer que existe um propósito político nessa ação, que é justamente clamar pela autodeterminação da Palestina e criação de um Estado”, finaliza.
Fonte: Jovem Pan News
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